São Paulo, sábado, 30 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Letras invisíveis registram entrechoque cultural do século

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

Três semanas atrás foi divulgado um documento cuja importância é inversamente proporcional à quase nula atenção que recebeu.
De acordo com o lide de seu release: "O Conselho do Comitê de Ministros da Europa adotou hoje [7/11/02] o Protocolo Adicional à Convenção sobre Cibercrime. O protocolo requer dos Estados que criminalizem a disseminação de material racista e xenófobo através de sistemas de computador, bem como de ameaça e ofensa ('insult') racistas ou xenofobicamente motivadas, incluindo a negação, a minimização flagrante, a aprovação ou justificação de genocídio ou crimes contra a humanidade, particularmente aqueles ocorridos no período de 1940-45. Ele também define a noção dessa categoria de material e determina a medida segundo a qual sua disseminação viola os direitos alheios, e criminaliza desta maneira determinados comportamentos".
Um pequeno passo para um homem, dirão alguns, mas um grande salto para a humanidade. Afinal, não há nada melhor para banir alguns flagelos ancestrais do que a criação de belas leis. Basta, para confirmá-lo, recordar o "tratado entre os Estados Unidos e as Outras Potências estipulando a renúncia da guerra como instrumento de política nacional" que, conhecido também como pacto Briand-Kellog, foi assinado em Paris em 27/8/28 e ratificado pelo presidente americano em 17/1/29. Como se sabe, não houve mais guerra desde então.
Os problemas com o Protocolo sobre Cibercrime não se resumem, porém, ao irrealismo inerente a todas as tentativas utópicas de mudar a natureza humana por decreto. Eles se prolongam tanto na direção de sua origem, ou seja, os bastidores labirinticamente tecnoburocráticos, pouco legitimados pelo voto e menos ainda supervisionados pelos eleitores, da União Européia, quanto na de suas consequências, a principal das quais é a de, com um linguajar apropriadamente vago, impor limites arbitrários à liberdade de expressão.
Quem se dê ao trabalho de ler o protocolo (http://www.coe.int/T/E/Legal-affairs/Legal-co-operation/
Combating-economic-crime/Cybercrime/
Racism-on-internet/PC-RX(2002)24E.pdf
) verá que a evocação das datas limite 1940-45 para qualificar a expressão "genocídio" é uma minhoca de néon na ponta de um anzol oculto. Alguém pode em sã consciência opor-se a uma legislação que, tão bem intencionada, destina-se a punir os execráveis negadores do Holocausto? Pergunta difícil. À qual os membros da Liga Árabe já contribuíram com sua resposta quando levaram ao famigerado pogrom, quero dizer, programa anti-(mas não muito)-racista de Durban (África do Sul), no ano passado, seus documentos que falavam de "holocaustos" (em caixa-baixa e no plural) como, obviamente, o perpetrado pelos judeus, quero dizer, sionistas contra os palestinos. No âmbito das novas limitações legais, uma discussão como a que desmascarou o massacre genocida que não ocorreu durante a batalha de abril em Jenin, caso se realizasse por meio da internet, poderia resultar na prisão dos participantes.
Se já não fosse suficientemente perigoso delegar a gente que não responde a ninguém o poder de determinar o que é permissível dizer, escrever ou pensar, não há como não suspeitar de que o protocolo em questão esconde outro objetivo insidioso. Em última instância, o que é ou não comunicável no ciberespaço se define pelo seguinte parágrafo: "O Congresso não promulgará nenhuma lei referente a uma oficialização de religião, ou proibindo o livre exercício disso; ou reduzindo a liberdade de expressão ("speech'), ou da imprensa; ou o direito de as pessoas se reunirem pacificamente e requererem ao Governo a reparação de injustiças".
Trata-se da segunda emenda da constituição dos EUA, o país que desenvolveu a internet e dita suas regras. Não é de hoje que a intelectualidade e as elites do Velho Mundo se insurgem contra o que consideram o pior dos fundamentalismos norte-americanos: aquele que chamam de "fetichismo da liberdade de expressão". O que parecem pretender é, legislando, isolarem a Europa dos "excessos" transatlânticos do iluminismo. Assim, mais um capítulo do principal entrechoque cultural ("Kulturkampf" em alemão) do novo século acaba de ser escrito em letras quase invisíveis no reverso do contrato social europeu.


Texto Anterior: Mariana & Gustavo: Nós e o mar
Próximo Texto: Panorâmica - Literatura: García Márquez desiste de Feira de Guadalajara
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.