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RODAPÉ
Letras invisíveis registram entrechoque cultural do século
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
Três semanas atrás foi divulgado um documento cuja
importância é inversamente proporcional à quase nula atenção
que recebeu.
De acordo com o lide de seu release: "O Conselho do Comitê de
Ministros da Europa adotou hoje
[7/11/02] o Protocolo Adicional à
Convenção sobre Cibercrime. O
protocolo requer dos Estados que
criminalizem a disseminação de
material racista e xenófobo através de sistemas de computador,
bem como de ameaça e ofensa
('insult') racistas ou xenofobicamente motivadas, incluindo a negação, a minimização flagrante, a
aprovação ou justificação de genocídio ou crimes contra a humanidade, particularmente aqueles
ocorridos no período de 1940-45.
Ele também define a noção dessa
categoria de material e determina
a medida segundo a qual sua disseminação viola os direitos
alheios, e criminaliza desta maneira determinados comportamentos".
Um pequeno passo para um homem, dirão alguns, mas um grande salto para a humanidade. Afinal, não há nada melhor para banir alguns flagelos ancestrais do
que a criação de belas leis. Basta,
para confirmá-lo, recordar o "tratado entre os Estados Unidos e as
Outras Potências estipulando a
renúncia da guerra como instrumento de política nacional" que,
conhecido também como pacto
Briand-Kellog, foi assinado em
Paris em 27/8/28 e ratificado pelo
presidente americano em 17/1/29.
Como se sabe, não houve mais
guerra desde então.
Os problemas com o Protocolo
sobre Cibercrime não se resumem, porém, ao irrealismo inerente a todas as tentativas utópicas de mudar a natureza humana
por decreto. Eles se prolongam
tanto na direção de sua origem,
ou seja, os bastidores labirinticamente tecnoburocráticos, pouco
legitimados pelo voto e menos
ainda supervisionados pelos eleitores, da União Européia, quanto
na de suas consequências, a principal das quais é a de, com um linguajar apropriadamente vago,
impor limites arbitrários à liberdade de expressão.
Quem se dê ao trabalho de ler o
protocolo
(http://www.coe.int/T/E/Legal-affairs/Legal-co-operation/
Combating-economic-crime/Cybercrime/
Racism-on-internet/PC-RX(2002)24E.pdf) verá que a evocação das
datas limite 1940-45 para qualificar a expressão "genocídio" é
uma minhoca de néon na ponta
de um anzol oculto. Alguém pode
em sã consciência opor-se a uma
legislação que, tão bem intencionada, destina-se a punir os execráveis negadores do Holocausto?
Pergunta difícil. À qual os membros da Liga Árabe já contribuíram com sua resposta quando levaram ao famigerado pogrom,
quero dizer, programa anti-(mas
não muito)-racista de Durban
(África do Sul), no ano passado,
seus documentos que falavam de
"holocaustos" (em caixa-baixa e no plural) como, obviamente, o
perpetrado pelos judeus, quero
dizer, sionistas contra os palestinos. No âmbito das novas limitações legais, uma discussão como a
que desmascarou o massacre genocida que não ocorreu durante a
batalha de abril em Jenin, caso se
realizasse por meio da internet,
poderia resultar na prisão dos
participantes.
Se já não fosse suficientemente
perigoso delegar a gente que não
responde a ninguém o poder de
determinar o que é permissível dizer, escrever ou pensar, não há como não suspeitar de que o protocolo em questão esconde outro
objetivo insidioso. Em última instância, o que é ou não comunicável no ciberespaço se define pelo
seguinte parágrafo: "O Congresso
não promulgará nenhuma lei referente a uma oficialização de religião, ou proibindo o livre exercício disso; ou reduzindo a liberdade de expressão ("speech'), ou da
imprensa; ou o direito de as pessoas se reunirem pacificamente e
requererem ao Governo a reparação de injustiças".
Trata-se da segunda emenda da
constituição dos EUA, o país que
desenvolveu a internet e dita suas
regras. Não é de hoje que a intelectualidade e as elites do Velho
Mundo se insurgem contra o que
consideram o pior dos fundamentalismos norte-americanos:
aquele que chamam de "fetichismo da liberdade de expressão". O
que parecem pretender é, legislando, isolarem a Europa dos "excessos" transatlânticos do iluminismo. Assim, mais um capítulo
do principal entrechoque cultural
("Kulturkampf" em alemão) do
novo século acaba de ser escrito
em letras quase invisíveis no reverso do contrato social europeu.
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