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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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MÔNICA BERGAMO

Bonequinhas sem luxo

Marlene Bergamo/Folha Imagem
"Mostra as unhas aí", diz Adriana para Rojane e Emília, a caminho da manicure


Um milhão e meio de meninas. Mais ou menos 20 estádios do Morumbi lotados. Foi essa a procura por um lugar ao sol no mais que seleto mundo das modelos somente nos últimos dois meses. A multidão que sonha em ser Gisele Bündchen aumenta a cada ano. Em 2002, foram 600 mil as inscritas no maior concurso do país, o Riachuelo Mega Model. Este ano, já são 1 milhão. O Ford Supermodel atraiu 300 mil candidatas, o Elite Model Look, 92 mil, e o Feminíssima, 10 mil. "Como Ser uma Modelo de Sucesso", de Costanza Pascolato, já vendeu 7.500 exemplares em menos de um mês -um best-seller, para os padrões brasileiros.

A baiana Rojane Fradique é uma das estrelas da constelação que começa a surgir a partir dos concursos já realizados neste ano. Ela foi a segunda colocada do Elite Model e, na semana passada, retornou de Cingapura, onde representou o Brasil na etapa internacional do concurso. "Rojane é maravilhosa. Vai ser a estrela dos próximos desfiles", diz Paulo Borges, da SP Fashion Week. "É toda linda, perfeita", diz Carlos Miele, da M. Officer.

Isso mudou a vida de Rojane? Ela, que é de uma família muito pobre de Salvador, acha que sim, e para muito melhor. Até agora, porém, não ganhou um único tostão. Mas como, se estrela uma campanha da Arezzo e fez editoriais para as revistas "S/Nš" e a suíça "Icone"?

Rojane, quando está em São Paulo, fica em um apartamento de três quartos em que a agência hospeda até 12 "meninas", em Pinheiros. Além de pagar pelas primeiras fotos de seu book (R$ 550 o ensaio e até R$ 290 o composite), ela, como todas as outras modelos, desembolsa R$ 25/dia para ficar no apê e sofre desconto no cachê até quando o motorista a leva para trabalhar. "É muita despesa. As agências têm que cobrar", diz Alex Dugocsek, da Mega. Feitos os descontos, Rojane acaba ficando com quase nada.

Layane Suliman, 15, cumpria na quinta-feira, em Brasília, a missão de incentivar as 17 candidatas que concorriam à final centro-oeste do Riachuelo Mega Model (17 mil inscritas), que ela venceu no ano passado. Em fevereiro, Layane vai tentar a vida em Milão -mas, como Rojane, até agora não conheceu a tão sonhada prosperidade que tops brasileiras de fama internacional exibem. Vive em Planaltina, periferia de Brasília, com a mãe. Das surpresas e dificuldades do início, há um ano, se lembra de quando se hospedava no apartamento da agência, em SP. Dinheiro sumiu de sua bolsa e até seus óculos foram roubados.

No universo das aspirantes a top model, autonomia não existe. Da alimentação às roupas íntimas que usam, tudo, absolutamente tudo é decidido por profissionais da agência. "Nem discuto, mas às vezes eu ligo chorando para meus pais em Caxias do Sul", diz Mariana Marques, 18, vice-campeã do Elite Model em 99.

Logo após o concurso da Elite deste ano, a dona da agência, Adriana Leite, e seu assistente, Célio Pereira, levaram as vencedoras Rojane e Emília Cechele, a primeira colocada, para comprar roupas. As modelos em nenhum momento eram consultadas -ainda que o dinheiro das compras fosse descontado de seus futuros cachês. E se elas não gostassem das roupas?

"Não tem que gostar, fofa. Você não está entendendo. Tem que usar e pronto", diz Célio. E assim foi na ponta-de-estoque de Pinheiros, com roupas de marcas como Triton e Ellus. Rojane e Emília experimentaram -mudas e caladas- calças, blusas e malhas. Célio e Adriana encontraram, por R$ 69,90, um vestido "preto, seco", que procuravam para Rojane.

Leitura obrigatória? Tem sim, é o "Manual para Modelos Elite". Está tudo lá: "O departamento de New Faces definirá o seu look juntamente com os bookers e o cabeleireiro"; "É indispensável que você se apresente nos restaurantes bem vestida"; "Preto é elegante, chique, sexy". E um sutil recadinho: "Existem milhões de garotas que gostariam de estar no seu lugar e serem representadas pela Elite".

PODEROSA CHEFONA

A babá linha-dura da Mãozinha

O apartamento da Elite tem, há dez anos, uma autoridade máxima: a governanta Valdeci Alves dos Santos, a Val. É ela quem controla o volume do som, o horário de chegada das meninas, a arrumação dos quartos, quanto cabe a cada uma delas na conta de telefone. "Sou uma sargentona", assume. "E elas sabem que, se pisarem na bola, eu ligo para a agência e é expulsão na hora."
Gisele Bündchen já passou uma temporada sob os cuidados de Val, assim que conquistou a segunda colocação no concurso da Elite, em 1993. "Ela sempre foi econômica e determinada", conta Val. E apelido, ela tinha? "Era Mãozinha", conta e mostra a mão fechada.
"Quase não ligava para casa para não gastar com telefone e quase não comia. Não sei se era porque não tinha fome ou se era para economizar", afirma. Segundo a governanta, Gisele estendia a cama "direitinho", lavava louça e as roupas sem reclamar.
Namorado, ela não tinha. "Mas quem sempre ligava era o Gabriel Matarazzo." Como é de família tradicional, Val autorizou o namoro dos dois. "De vez em quando eles ficavam conversando lá embaixo. Eu ficava na janela, olhando tudo. Quando foram na pizzaria, fui junto."
No apartamento, quadros são proibidos -exigência da proprietária, mas na sala há uma cortiça com fotos de modelos e bilhetinhos carinhosos para a governanta -muitas vezes chamada de "mãe".
Uma coisa deixa a sargenta Val com a pulga atrás da orelha. "Incenso é mau sinal", ela diz. Conta que viu na TV um programa em que explicavam que a fumacinha do incenso serviria, na verdade, para disfarçar o cheiro de cigarrinhos não convencionais. "A primeira coisa que faço quando elas chegam é olhar no fundo dos olhos para ver se não estão vermelhos." Durante a semana, todas têm que estar em casa às 20h30. No fim de semana, às 22h30 e olhe lá. É proibido também o prosaico ato de lavar as calcinhas durante o banho e pendurá-las no box. "Aí vira bagunça, né?", diz.

SAÚDE

Doutor V. e as mulheres

Alarmado com a desinformação e o despreparo de modelos adolescentes, o ginecologista Vinícius Paula de Almeida, 32, se dispôs a atender de graça algumas dessas meninas. A agência Mega já solicitou seus serviços 38 vezes para o atendimento de modelos em início de carreira. E a que conclusão ele chegou? "Falta informação e prevenção", diz.

Folha - Como estava a saúde das modelos da Mega?
Almeida -
Entre todas, 98% apresentavam o indício de algum problema patológico; 76% já eram sexualmente ativas, 69% não haviam realizado o papanicolau nos últimos 12 meses, só 35% usavam camisinha em todas as relações sexuais e 22% já haviam provocado abortos. Eu as examino, medico e elas desaparecem. Sessenta e sete por cento delas não voltaram mais.

Folha - Quantas modelos da Mega você já atendeu?
Almeida -
Trinta e oito. Mesmo sem cobrar consulta, acho que as agências não as têm estimulado a passar no consultório. Não é uma preocupação da agência.

Folha - Já atendeu alguma modelo adolescente grávida?
Almeida -
Grávida, não. Mas, durante a conversa que eu tenho com elas, algumas se referem a aborto.

Folha - E isso pode ser uma imposição da profissão? Elas podem receber alguma orientação no próprio local de trabalho?
Almeida -
Eu não tenho essa informação. O nome dos medicamentos que abortam é de conhecimento público. Acredito que uma acaba falando para a outra.

E-mail: bergamo@folhasp.com.br

COM CLEO GUIMARÃES E LUCRECIA ZAPPI

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