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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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Poeta revela, em testemunho, um Samuel Beckett boêmio, generoso e "intenso", pondo em questão sua mítica soturnez

A paixão de Beckett

PHILIPPE SOLLERS
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

Em Paris, em 1959, um escritor marginal e bizarro de 53 anos faz amizade com um casal estranho e reservado. Ele, pintor e desenhista; ela, poeta de origem americana. Eles são judeus e têm duas filhas pequenas.
O trio sai à noite, bebe e fuma bastante, e a poeta descreve o escritor da seguinte maneira: "Um homem determinado, intenso, erudito, apaixonado e, sobretudo, belo, habitado pelo sopro divino". Ou, ainda: "Ele era poeta até na menor de suas fibras e células". Não será um exagero? Não, trata-se de Samuel Beckett (1906-89), a quem Anne Atik conheceu bem, a ponto de lançar "Comment C'Était" (Como Era) -livro baseado em suas memórias sobre o homem e o artista Samuel Beckett.
Avigdor Arikha já conhece Beckett; Anne Atik o descobre. Juntos, eles vagueiam de madrugada por Montparnasse. Tomam uísque, vinho, cerveja, champanha. Voltam para casa, cambaleando e recitando poemas. Beckett jamais aparenta estar embriagado; sua memória é fenomenal, ele parece conhecer livros inteiros de cor e estar familiarizado com os detalhes de centenas de quadros expostos por todo o mundo.
Reza a lenda que Beckett era uma esfinge ou uma múmia impassível, um esqueleto niilista, uma fria abstração inumana, um santo invertido, um morto-vivo manipulador de marionetes desesperadas. É evidente que ele criou essa imagem para garantir sua paz, mas nada poderia ser mais distante da verdade, e é por essa razão que o testemunho direto de Anne Atik é tão precioso, tão sensível, tão insólito.
Beckett? Generosidade, bondade, atenção às crianças, jogador (xadrez, sinuca), pianista, esportista (ele nada, caminha, joga críquete e gosta de assistir a partidas). Silencioso? Sim, mas para interromper o imenso bate-papo superficial humano, sua rotina, sua inautenticidade, sua eterna lengalenga.
Com o passar do tempo e a chegada da celebridade incômoda, ele passa a ter jantares tranquilos na casa de Anne e Avigdor.
Ele fala de uma infância próspera e feliz: "Ele se indagava por que, para muitos de seus leitores, seus escritos indicavam que ele teria tido uma infância infeliz". Longe disso: passeios no campo com seu pai, confiança e luz. De tempos em tempos, ele passa de um silêncio moderado a um mutismo profundo: "Era delicado romper o silêncio. Teria sido pior do que interromper uma confissão".
De vez em quando Sam e Avigdor se levantam, de punho cerrado, para declamar um verso. Francês? Apollinaire. Alemão? Goethe. Italiano? Dante. Beckett chega ao ponto de encarar o português para ler Pessoa.
Quase ao final de sua vida, no sinistro lar de sua velhice, Beckett ainda recebe seus amigos, com sua garrafa de uísque Jameson ("vinda diretamente da Irlanda") e não rejeitando um charuto. Morre em 12 de dezembro de 1989. Os obituários de um Prêmio Nobel de Literatura já estão prontos. Yeats: "A morte de amigos, a morte! De cada olho que brilha! E que cortava o fôlego! Foram reduzidos a nuvens do céu...".


COMMENT C'ÉTAIT - SOUVENIRS SUR SAMUEL BECKETT. De: Anne Atik. Editora: Editions de L'Olivier. Quanto: 20 (cerca de R$ 70), 168 págs. Onde encomendar: www.amazon.fr; www.fnac.com.


Philippe Sollers, 67, é escritor e ensaísta, autor de "O Parque" e "Sade contra o Ser Supremo"

Tradução Clara Allain


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