São Paulo, quarta-feira, 30 de novembro de 2005

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LITERATURA

Em biografia recém-lançada, Ruy Castro refuta tese de que visual da cantora teria sido imposto por Hollywood

Livro derruba mitos sobre Carmen Miranda

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Há cinco anos, ao começar a pesquisar a vida de Carmen Miranda para uma biografia a que se dedicaria com exclusividade a partir de abril de 2003, Ruy Castro ainda considerava plausíveis alguns mitos em torno da vida da cantora. Agora, ao lançar "Carmen - Uma Biografia", poucos desses mitos ficaram de pé.
O cruzamento de dezenas de entrevistas com pesquisas em jornais e arquivos pessoais derrubou para sempre uma série de lendas. Mas, para Castro, essa operação, em vez de diminuir a "pequena notável", aumenta seu tamanho.
"Um dos orgulhos que esse livro me dá é que espero ter conseguido mostrar que Carmen foi praticamente a inventora da música popular brasileira como cantora. Ela inventou um jeito brasileiro de cantar. E já chegou pronta aos Estados Unidos. Na verdade, ela já estava pronta em "Taí'", exalta Castro, 57, referindo-se ao sucesso de 1930 que transformou Carmen de anônima em estrela em um Carnaval.
O jornalista derruba no livro a idéia superficial de que o estereótipo eternizado por Carmen teria sido uma imposição de Hollywood. Afinal, "O Que É Que a Baiana Tem?" surgiu em um filme brasileiro de 1938, "Banana da Terra", e, nele, Carmen, orientada por Dorival Caymmi, já se valeu de indumentária e trejeitos parecidos com os que internacionalizaria a partir do ano seguinte.
"O que houve foi uma exacerbação do personagem", assinala Castro, lembrando que não aconteceu com Carmen nada muito diferente do que acontecia com astros e estrelas norte-americanas. "Spencer Tracy e Humphrey Bogart, por exemplo, faziam sempre o mesmo tipo. As pessoas já sabiam o que iam ver. Carmen ainda conseguiu falar em português nos filmes. Perdeu algumas batalhas, mas ganhou outras."
Os filmes estrelados pela cantora são normalmente associados à "política da boa vizinhança", estratégia de aproximação cultural (com fins comerciais) dos EUA com a América Latina idealizada por Nelson Rockfeller e apoiada pelo presidente Franklin Roosevelt. Segundo Castro, eles até podem ter colaborado para o plano, mas não começaram por causa dele.
"Não tenho nada contra as teses, mas meu negócio é conferir datas. Quando Carmen filmou "Down Argentine Way" ("Serenata Tropical'), Rockfeller ainda estava planejando a "política da boa vizinhança". Ainda não era uma política de Estado, mas um estado de espírito. E, dos grandes estúdios, só a Fox, porque tinha Carmen, e a RKO, que era de Rockfeller, fizeram produções com esse espírito. Não houve imposição do governo" diz Castro.
Duas lendas ambientadas no Cassino da Urca também foram aterradas por Castro. A primeira dizia que Lee Shubert, o empresário mais importante da Broadway, tinha visto um show de Carmen por acaso e que, impressionado, decidira contratá-la.
Impressionado ele ficou, mas, como provam cartas do acervo de Shubert que Castro consultou, pedira uma reserva no cassino já alertado de Carmen poderia interessá-lo. "E o que ele fazia era teatro de variedades, no qual uma brasileira como Carmen poderia se encaixar bem", diz o jornalista.
A segunda lenda, mais famosa, tratava das vaias que ela sofrera ao se apresentar na Urca em 15 de julho de 1940, logo após retornar de sua primeira e muito bem-sucedida temporada norte-americana.
"Não ouvi de ninguém e não li em lugar nenhum que houve vaia. Houve gelo. Mas era uma platéia formada em boa parte por gente do governo Vargas, que na época estava próxima do fascismo e do nazismo. Como iam achar graça em Carmen dizendo "good night, people" e cantando "South American Way'? E ela ainda estava resfriada", afirma Castro, que contou com depoimentos de quatro pessoas presentes ao cassino naquela noite.
Dois meses depois, Carmen voltaria ao mesmo palco e seria fartamente aplaudida por uma platéia mais afeita ao seu repertório, então já atualizado com respostas como "Disseram que Eu Voltei Americanizada", especialmente composta por Vicente Paiva e Luiz Peixoto.
Situações como essa reforçaram para Castro a importância de contextualizar as fases da vida de Carmen. Ao ver, por exemplo, que ela morou entre os 6 e os 16 anos em uma Lapa que começava a ser a Lapa, recheada de artistas, malandros e prostitutas para todos os cacifes, ele concluiu que essa paisagem deve ter influenciado muito o comportamento da cantora. E ela ingressou na carreira exatamente quando do estouro do rádio, do samba e das marchinhas, áreas das quais se tornou dona.
Dos homens da vida de Carmen, Castro fala em detalhes de nomes, número e desempenhos. Aloysio de Oliveira, que poderia ter sido marido, mas não quis ser, não sai bem do livro. David Sebastian, "caça-dotes e biscateiro" que cavou cargo e o conquistou, também não, mas deixa de ser o "assassino" de Carmen, como costuma ser considerado.
"Ela já tomava estimulantes e barbitúricos antes. E também já bebia. Ele foi uma facilidade a mais, já que também era alcoólatra e queria que ela trabalhasse muito para ganhar dinheiro", explica Castro. Ele garante, mais uma vez, que esta é a última biografia que escreve.


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