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MARCELO COELHO
O fim, o princípio e o meio do caminho
Os documentários de Eduardo Coutinho dispõem de um
público fiel. Quem se fascinou
com a variedade dos tipos humanos de classe média apresentados
em "Edifício Master" ou com a
selvagem estranheza da religiosidade popular mostrada em "Santo Forte" está pronto para gostar
de "O Fim e o Princípio". Também fui ver o filme com essa predisposição, mas alguma coisa não
funcionou conforme o planejado.
Abandonando o cenário urbano de seus filmes anteriores,
Eduardo Coutinho foi para uma
comunidade perdida no sertão da
Paraíba, onde acabou se interessando pelos velhos do lugar. Como sempre, a sua câmera realiza
verdadeiros milagres de simpatia
e penetração humana. Há aqui
um segredo difícil de desvendar.
Quando posamos para uma fotografia ou somos filmados por alguém, o mais provável é que uma
certa falsidade, uma certa rigidez,
um certo clarão irreal e frio tomem conta de nós, como se estivéssemos iluminados por uma
lâmpada de geladeira. Trata-se,
sem dúvida, de uma fixidez bastante mórbida, marcada pela intuição, quem sabe, de que a imagem captada pelo filme continuará a existir depois de nós.
Nos documentários de Eduardo
Coutinho, o contrário parece
acontecer. Os entrevistados se revelam com total naturalidade; é
como se ficassem até mais espontâneos, mais autênticos e reais
diante da câmera do que na própria vida de todo dia.
Pode-se intuir, no tom de voz
com que o diretor aborda os entrevistados, uma ausência de simpatia forçada, uma atitude de rigor respeitoso, que estão nos antípodas das técnicas da intimidade
televisiva, da euforia viscosa e
abusada dos animadores de auditório. Talvez isso contribua para o caráter verdadeiro, para o
grau de confiança humana incomparável que toma conta de
seus filmes.
O jeito contido e seco de Eduardo Coutinho serve, imagino, como um fator importante para evitar os riscos do populismo. O interesse de seus documentários está
em retratar pessoas comuns; mas
importa provar, o tempo todo,
que ninguém é comum. Ver no
conjunto dos entrevistados alguma coisa como "o povo brasileiro", procurar neste ou naquele filme as "raízes de nossa identidade
cultural" -estamos felizmente livres desse tipo de coisa.
O estilo paternalista e autoritário de fazer política "para os pobres", típico dos tempos anteriores a 1964 (Vargas, Ademar de
Barros etc.), talvez tenha sido
substituído hoje em dia por uma
espécie de populismo eletrônico
que -de Silvio Santos a Duda
Mendonça, passando pelas novelas e pelas campanhas de caridade televisiva- impregna quase
que a totalidade da esfera pública
brasileira.
É assim que o "antipopulismo"
dos documentários de Eduardo
Coutinho se volta justamente para a esfera da intimidade, para a
vida pessoal dos entrevistados,
para as soluções muito particulares que encontram ao se deparar
com os temas da solidão, da pobreza, da transcendência, da vida
familiar, da morte.
Um dos problemas de "O Fim e
o Princípio", a meu ver, é que essa
estratégia acaba ficando evidente
demais. Passa-se a perguntar diretamente aos entrevistados se,
por exemplo, têm medo da morte,
se tiveram felicidade no casamento ou o que acham da vida. Claro
que isso resulta em bons momentos; mas a banalidade também se
faz sentir. Diante de questões
muito abertas, como o sentido da
vida e o futuro após a morte, é impossível fugir do lugar-comum;
mais do que isso, é como se o populismo, em geral evitado por
Coutinho, quisesse retornar pela
invocação mítica de tantos velhinhos sertanejos, cheios de sabedoria e experiência...
Mas não vou tão longe. Vários
fatores contrabalançam esse problema. Um dos mais notáveis é a
peculiaridade da fala dos personagens. "O Fim e o Princípio" é
um filme para ser "escutado",
tanto quanto para ser visto: os sobressaltos de entonação, as obscuridades de vocabulário, os acidentes de sotaque representam,
aqui, uma função essencial de estranhamento. Depois de um silêncio, há palavras proferidas
num arranque súbito, como que
dando botes no ar; em outros casos, a velhice impõe uma desarticulação verbal quase completa;
numa leitura irônica, é como se as
questões propostas por Eduardo
Coutinho não tivessem mesmo
resposta inteligível.
O idiossincrático, o bizarro, o
que há de irredutível em cada ser
humano voltam, assim, a fazer
parte do filme, para além do que
possa haver de mais genérico e
frouxo em sua concepção. Mais
do que isso, é como se os próprios
entrevistados soubessem, em alguns momentos, ironizar o diretor. Escondido atrás de uma parede de pau-a-pique, um homem
muito magro, sem camisa e sem
dentes, parece não ter a menor
disposição de dar entrevista. Em
seguida, encara Eduardo Coutinho e pergunta se ele "é o comandante da caravela"; imagina o
documentarista como Pedro Álvares Cabral descobrindo o Brasil
e cai numa gargalhada surda, retorcida como um cipó. Em outros
momentos do filme, a menção a
Cabral reaparece.
Talvez se possa ver nisto um outro sentido para o título do filme.
O princípio e o fim não seriam
apenas o nascimento e a morte
mas também a origem e o destino
do Brasil. Quem sabe esse tipo de
pergunta -a busca de nossa
identidade, de nossa essência
etc.- esteja aos poucos perdendo
razão de ser; o Brasil já foi descoberto, e não tem verdades supremas a oferecer.
"O senhor tem algum sonho?",
pergunta Eduardo Coutinho a
um dos sertanejos. Ele estranha
muitíssimo a pergunta, pede mais
explicações, não imagina nada de
especial para o futuro. Haja realismo. Quaisquer que sejam suas
preocupações com a eternidade, "O Fim e o Princípio" não poderia ser mais atual.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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