São Paulo, quarta-feira, 30 de novembro de 2005

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MARCELO COELHO

O fim, o princípio e o meio do caminho

Os documentários de Eduardo Coutinho dispõem de um público fiel. Quem se fascinou com a variedade dos tipos humanos de classe média apresentados em "Edifício Master" ou com a selvagem estranheza da religiosidade popular mostrada em "Santo Forte" está pronto para gostar de "O Fim e o Princípio". Também fui ver o filme com essa predisposição, mas alguma coisa não funcionou conforme o planejado.
Abandonando o cenário urbano de seus filmes anteriores, Eduardo Coutinho foi para uma comunidade perdida no sertão da Paraíba, onde acabou se interessando pelos velhos do lugar. Como sempre, a sua câmera realiza verdadeiros milagres de simpatia e penetração humana. Há aqui um segredo difícil de desvendar. Quando posamos para uma fotografia ou somos filmados por alguém, o mais provável é que uma certa falsidade, uma certa rigidez, um certo clarão irreal e frio tomem conta de nós, como se estivéssemos iluminados por uma lâmpada de geladeira. Trata-se, sem dúvida, de uma fixidez bastante mórbida, marcada pela intuição, quem sabe, de que a imagem captada pelo filme continuará a existir depois de nós.
Nos documentários de Eduardo Coutinho, o contrário parece acontecer. Os entrevistados se revelam com total naturalidade; é como se ficassem até mais espontâneos, mais autênticos e reais diante da câmera do que na própria vida de todo dia.
Pode-se intuir, no tom de voz com que o diretor aborda os entrevistados, uma ausência de simpatia forçada, uma atitude de rigor respeitoso, que estão nos antípodas das técnicas da intimidade televisiva, da euforia viscosa e abusada dos animadores de auditório. Talvez isso contribua para o caráter verdadeiro, para o grau de confiança humana incomparável que toma conta de seus filmes.
O jeito contido e seco de Eduardo Coutinho serve, imagino, como um fator importante para evitar os riscos do populismo. O interesse de seus documentários está em retratar pessoas comuns; mas importa provar, o tempo todo, que ninguém é comum. Ver no conjunto dos entrevistados alguma coisa como "o povo brasileiro", procurar neste ou naquele filme as "raízes de nossa identidade cultural" -estamos felizmente livres desse tipo de coisa.
O estilo paternalista e autoritário de fazer política "para os pobres", típico dos tempos anteriores a 1964 (Vargas, Ademar de Barros etc.), talvez tenha sido substituído hoje em dia por uma espécie de populismo eletrônico que -de Silvio Santos a Duda Mendonça, passando pelas novelas e pelas campanhas de caridade televisiva- impregna quase que a totalidade da esfera pública brasileira.
É assim que o "antipopulismo" dos documentários de Eduardo Coutinho se volta justamente para a esfera da intimidade, para a vida pessoal dos entrevistados, para as soluções muito particulares que encontram ao se deparar com os temas da solidão, da pobreza, da transcendência, da vida familiar, da morte.
Um dos problemas de "O Fim e o Princípio", a meu ver, é que essa estratégia acaba ficando evidente demais. Passa-se a perguntar diretamente aos entrevistados se, por exemplo, têm medo da morte, se tiveram felicidade no casamento ou o que acham da vida. Claro que isso resulta em bons momentos; mas a banalidade também se faz sentir. Diante de questões muito abertas, como o sentido da vida e o futuro após a morte, é impossível fugir do lugar-comum; mais do que isso, é como se o populismo, em geral evitado por Coutinho, quisesse retornar pela invocação mítica de tantos velhinhos sertanejos, cheios de sabedoria e experiência...
Mas não vou tão longe. Vários fatores contrabalançam esse problema. Um dos mais notáveis é a peculiaridade da fala dos personagens. "O Fim e o Princípio" é um filme para ser "escutado", tanto quanto para ser visto: os sobressaltos de entonação, as obscuridades de vocabulário, os acidentes de sotaque representam, aqui, uma função essencial de estranhamento. Depois de um silêncio, há palavras proferidas num arranque súbito, como que dando botes no ar; em outros casos, a velhice impõe uma desarticulação verbal quase completa; numa leitura irônica, é como se as questões propostas por Eduardo Coutinho não tivessem mesmo resposta inteligível.
O idiossincrático, o bizarro, o que há de irredutível em cada ser humano voltam, assim, a fazer parte do filme, para além do que possa haver de mais genérico e frouxo em sua concepção. Mais do que isso, é como se os próprios entrevistados soubessem, em alguns momentos, ironizar o diretor. Escondido atrás de uma parede de pau-a-pique, um homem muito magro, sem camisa e sem dentes, parece não ter a menor disposição de dar entrevista. Em seguida, encara Eduardo Coutinho e pergunta se ele "é o comandante da caravela"; imagina o documentarista como Pedro Álvares Cabral descobrindo o Brasil e cai numa gargalhada surda, retorcida como um cipó. Em outros momentos do filme, a menção a Cabral reaparece.
Talvez se possa ver nisto um outro sentido para o título do filme. O princípio e o fim não seriam apenas o nascimento e a morte mas também a origem e o destino do Brasil. Quem sabe esse tipo de pergunta -a busca de nossa identidade, de nossa essência etc.- esteja aos poucos perdendo razão de ser; o Brasil já foi descoberto, e não tem verdades supremas a oferecer.
"O senhor tem algum sonho?", pergunta Eduardo Coutinho a um dos sertanejos. Ele estranha muitíssimo a pergunta, pede mais explicações, não imagina nada de especial para o futuro. Haja realismo. Quaisquer que sejam suas preocupações com a eternidade, "O Fim e o Princípio" não poderia ser mais atual.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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