São Paulo, sexta-feira, 30 de novembro de 2007

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Crítica/"A Lenda de Beowulf"

Filme altera idéia de realidade na tela

Animação que estréia hoje aposta no cinema como espaço único em que se produz experiência estética insubstituível

Divulgação
A atriz Robin Wright Penn, como a rainha Wealthow


CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Reza a lenda que na primeira exibição pública do cinematógrafo, em 1895, entre os espectadores havia um sujeito de nome Georges Méliès. O fato é que Méliès seqüestrou dos irmãos Lumière seu aparelho de captar imagens e o transformou em máquina de produzir imagens, misturando àquela invenção humana ingredientes diabólicos, como fantasia, imaginação, fabulação e absurdo.
Com "A Lenda de Beowulf", Robert Zemeckis atravessa a ponte entre o pré-cinema e o pós-cinema e faz o mesmo que Méliès: desloca o filme de sua rota e abre um atalho que não se sabe ainda aonde vai dar. Zemeckis não é nenhum aventureiro e percorreu, no seio da indústria, uma trajetória marcada pela coerência.
Nos anos 80, embarcou milhões nas aventuras movidas a efeitos especiais nos três longas da série "De Volta para o Futuro". Em seguida, aboliu as fronteiras entre filme com atores e desenho animado no espetacular "Uma Cilada para Roger Rabbit". Depois, continuou a brincar de mágica tornando os efeitos especiais invisíveis em "Forrest Gump". Agora, tira do baú experiências com projeção em 3-D (que andavam condenadas aos parques da Disney) e realiza um filme que retorna ao passado para encontrar um caminho rumo ao futuro.
Na projeção em 3-D (indispensável para a experiência adequada de "A Lenda de Beowulf"), o espectador vê personagens em figuras humanas e cenários que é capaz de reconhecer (um castelo, a natureza). Mas estas imagens sofreram um tratamento que as distancia da impressão de realidade a que fomos acostumados desde os primórdios do cinema.
O processo havia sido testado pelo diretor em "O Expresso Polar", seu trabalho anterior. Trata-se de um procedimento de digitalização chamado "performance capture", no qual os atores vestem uma malha que permite capturar os movimentos de seus corpos. Reduzidos a informação e transferidos para um computador, os movimentos são reconstruídos por meio de computação gráfica.
Trata-se, portanto, de um processo de "desrealização", que se reflete nitidamente na imagem final, ou melhor, uma virtualização da figura original dos atores. Tanto o processo quanto o resultado deixam claro que está em andamento uma revolução na natureza da imagem do cinema que a distancia da fotografia e a aproxima dos videogames.
Enquanto o suporte, a película, permaneceu analógico ao longo de seu primeiro século, o cinema manteve-se preso aos códigos da verossimilhança e subordinado à maioria das leis que regem a percepção natural, que ele reproduzia por meio da tomada, do corte e da edição.
Com o advento do digital, o suporte perde a materialidade e, com ela, é o peso da realidade que também se evapora. Ou, melhor dizendo, se virtualiza.
Em "A Lenda de Beowulf", o efeito mais imediato desse virtual está nos espaços, cujas transições adquirem fluidez e oferecem uma nova experiência da perspectiva (do que o uso do 3-D tira resultados assombrosos). Esta liberação se torna mais visível nas cenas de ação, mas encontra-se presente até mesmo nas piadas que envolvem a nudez do herói.
À primeira vista, não há nada de novo para quem está acostumado à percepção virtual dos games ou do Second Life. A diferença é que ainda não existia, até agora, uma possibilidade de imersão tão próxima do absoluto quanto as dadas pelas dimensões de uma tela e do escuro de uma sala de cinema.
O casamento dos games com o cinema vinha sendo ensaiado há anos, mas não passava de tentativas canhestras de adaptar os jogos para tramas de filmes, esforço no qual ambos saíam perdedores.
O que "A Lenda de Beowulf" esboça não é a transformação das salas em lugar de campeonatos coletivos com joysticks no escuro. Sua aposta mais alta é investir no cinema como um espaço único no qual se produz uma experiência estética insubstituível.


A LENDA DE BEOWULF
Direção:
Robert Zemeckis
Produção: EUA, 2007
Onde: Frei Caneca Unibanco Arteplex, Iguatemi Cinemark e circuito
Avaliação: ótimo


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