São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

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MEMÓRIA

Coragem é marca de uma pensadora da modernidade

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Susan Sontag passará para a história da cultura moderna ocidental como uma mulher inteligente, culta e corajosa. Sua filiação a um sofisticado grupo de intelectuais nova-iorquinos garantiu-lhe uma erudição nada provinciana, que ficou à mostra na sua primeira coleção de ensaios, "Contra a Interpretação".
Neste, valendo-se de leitura atualizada das obras dos franceses Antonin Artaud, Lévi-Strauss e Michel Leiris, entre outros, demonstra sua aptidão para o debate de idéias cosmopolita, a que soma um olhar bem particular sobre certa produção cultural americana, até então vista com vergonha pelos melhores intelectuais.
Naquele livro está sua primeira "pièce à scandale": o ensaio "Notas sobre Camp". Susan percebeu e demonstrou, ainda em tempos de artistas no armário da preferência sexual, um traço forte e definitivo na produção artística norte-americana, em particular no setor tido como pop. Em Hollywood e nos cabarés nova-iorquinos se definiu e ganhou hegemonia uma sensibilidade que caracterizou como sendo "camp" (o conceito poderia ser traduzido nos nossos dias por "queer").
Com verve e humor, num estilo que lembra a leveza de certos textos irônicos de Walter Benjamin, ela teceu considerações até hoje adoráveis sobre as coreografias de Busby Berkeley nos anos 1930, as canções de Cole Porter e a figura inimitável de Carmen Miranda.
Mas o país e o mundo viviam tempos bicudos. Como o nosso Antonio Calado, saiu ela à procura de um melhor conhecimento da Guerra do Vietnã. "Uma Viagem a Hanói" é um dos seus livros mais combativos e fascinantes, hoje talvez datado pelas circunstâncias. Nele fica, no entanto, marcada para sempre a nota de coragem que dominará seus escritos. Ao escrever aquele livro, coincidentemente ela descobriu no próprio corpo um vício da linguagem artística modernista (ver "A Montanha Mágica", de Thomas Mann) e da nossa linguagem cotidiana, a que dá combate sem tréguas. O vício lingüístico é associar metaforicamente graves conflitos sociais, políticos e econômicos às doenças mortais do século 20, trazendo para o enfermo um complexo de culpa a que deveria estar isento pelo seu estado.
A guerra na Ásia, por exemplo, era um "câncer" que precisava ser extirpado. Seu livro "Doença como Metáfora" foi precursor de lutas que se deram naquele momento e se dariam a partir dos anos 1980 no tocante à Aids.
Cultura européia como trampolim para a análise da produção artística norte-americana. Abordagem de temas tabus, que, antes do desbunde causado pela cultura das drogas, desconcertavam o meio sofisticado e puritano, predominantemente judeu, de Nova York. Sensibilidade artística, que percebia os vícios de linguagem em que incorriam grandes escritores e o zé-povinho. A essas três características da ensaística de Susan Sontag deve-se somar seu interesse por escrever romances, em que a preocupação com a restauração da história não se desvincula do amor pelas graças da ficção. Natural que uma obra que pouco a pouco se consagra pela habilidade da escritora em trabalhar questões tão diversificadas e de ponta acabe por lhe valer, no ano de 2003, o cobiçado Prêmio da Paz, da Feira de Frankfurt.
"Sob o Signo de Saturno" talvez seja o livro da maturidade. Ali estão reunidos ensaios definitivos sobre figuras marcantes, e muitas vezes até então pouco conhecidas, da modernidade ocidental. Ao ensaio sobre Walter Benjamin, que dá título ao livro, se soma uma apreciação apaixonada de um dos líderes obscuros da revolução moderna norte-americana, o educador Paul Goodman. À volta da obsessão por Antonin Artaud se soma, agora, uma das peças mais corajosas de Sontag -o longo artigo sobre Leni Riefenstahl, cineasta de Adolf Hitler nos anos 1930 e, nos anos 1970, fotógrafa dos últimos africanos autênticos, dos últimos Nuba.
Intrépida na sua leitura do "fascinante fascismo" de Riefenstahl, descobre que tanto na ponta que a colocou em desgraça quanto na outra ponta, que estava servindo para redimi-la, está o elogio da pureza étnica. Leni era sempre Leni, uma artista fascista. Susan Sontag nos faz e nos fará falta.


Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico, autor de, entre outros, "Uma Literatura nos Trópicos" (Rocco)


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