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MEMÓRIA
Coragem é marca de uma pensadora da modernidade
SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Susan Sontag passará para a
história da cultura moderna
ocidental como uma mulher inteligente, culta e corajosa. Sua filiação a um sofisticado grupo de intelectuais nova-iorquinos garantiu-lhe uma erudição nada provinciana, que ficou à mostra na
sua primeira coleção de ensaios,
"Contra a Interpretação".
Neste, valendo-se de leitura
atualizada das obras dos franceses
Antonin Artaud, Lévi-Strauss e
Michel Leiris, entre outros, demonstra sua aptidão para o debate de idéias cosmopolita, a que soma um olhar bem particular sobre certa produção cultural americana, até então vista com vergonha pelos melhores intelectuais.
Naquele livro está sua primeira
"pièce à scandale": o ensaio "Notas sobre Camp". Susan percebeu
e demonstrou, ainda em tempos
de artistas no armário da preferência sexual, um traço forte e definitivo na produção artística norte-americana, em particular no
setor tido como pop. Em Hollywood e nos cabarés nova-iorquinos se definiu e ganhou hegemonia uma sensibilidade que caracterizou como sendo "camp" (o
conceito poderia ser traduzido
nos nossos dias por "queer").
Com verve e humor, num estilo
que lembra a leveza de certos textos irônicos de Walter Benjamin,
ela teceu considerações até hoje
adoráveis sobre as coreografias de
Busby Berkeley nos anos 1930, as
canções de Cole Porter e a figura
inimitável de Carmen Miranda.
Mas o país e o mundo viviam
tempos bicudos. Como o nosso
Antonio Calado, saiu ela à procura de um melhor conhecimento
da Guerra do Vietnã. "Uma Viagem a Hanói" é um dos seus livros
mais combativos e fascinantes,
hoje talvez datado pelas circunstâncias. Nele fica, no entanto,
marcada para sempre a nota de
coragem que dominará seus escritos. Ao escrever aquele livro,
coincidentemente ela descobriu
no próprio corpo um vício da linguagem artística modernista (ver
"A Montanha Mágica", de Thomas Mann) e da nossa linguagem
cotidiana, a que dá combate sem
tréguas. O vício lingüístico é associar metaforicamente graves conflitos sociais, políticos e econômicos às doenças mortais do século
20, trazendo para o enfermo um
complexo de culpa a que deveria
estar isento pelo seu estado.
A guerra na Ásia, por exemplo,
era um "câncer" que precisava ser
extirpado. Seu livro "Doença como Metáfora" foi precursor de lutas que se deram naquele momento e se dariam a partir dos
anos 1980 no tocante à Aids.
Cultura européia como trampolim para a análise da produção artística norte-americana. Abordagem de temas tabus, que, antes do
desbunde causado pela cultura
das drogas, desconcertavam o
meio sofisticado e puritano, predominantemente judeu, de Nova
York. Sensibilidade artística, que
percebia os vícios de linguagem
em que incorriam grandes escritores e o zé-povinho. A essas três
características da ensaística de Susan Sontag deve-se somar seu interesse por escrever romances,
em que a preocupação com a restauração da história não se desvincula do amor pelas graças da
ficção. Natural que uma obra que
pouco a pouco se consagra pela
habilidade da escritora em trabalhar questões tão diversificadas e
de ponta acabe por lhe valer, no
ano de 2003, o cobiçado Prêmio
da Paz, da Feira de Frankfurt.
"Sob o Signo de Saturno" talvez
seja o livro da maturidade. Ali estão reunidos ensaios definitivos
sobre figuras marcantes, e muitas
vezes até então pouco conhecidas,
da modernidade ocidental. Ao
ensaio sobre Walter Benjamin,
que dá título ao livro, se soma
uma apreciação apaixonada de
um dos líderes obscuros da revolução moderna norte-americana,
o educador Paul Goodman. À volta da obsessão por Antonin Artaud se soma, agora, uma das peças mais corajosas de Sontag -o
longo artigo sobre Leni Riefenstahl, cineasta de Adolf Hitler nos
anos 1930 e, nos anos 1970, fotógrafa dos últimos africanos autênticos, dos últimos Nuba.
Intrépida na sua leitura do "fascinante fascismo" de Riefenstahl,
descobre que tanto na ponta que a
colocou em desgraça quanto na
outra ponta, que estava servindo
para redimi-la, está o elogio da
pureza étnica. Leni era sempre Leni, uma artista fascista. Susan
Sontag nos faz e nos fará falta.
Silviano Santiago é escritor, poeta e
crítico, autor de, entre outros, "Uma Literatura nos Trópicos" (Rocco)
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