|
Texto Anterior | Índice
CARLOS HEITOR CONY
2005, ano de caviar e de extintor de incêndio
Tempo de fazer retrospectivas do ano que passou e nada demais que eu faça a minha.
Desconfio das demais, são óbvias
e repetitivas, mas é da natureza e
função de qualquer exame sobre
o passado recente -tão recente
que ainda nem passou realmente,
como o caso do "mensalão" e as
dúvidas do presidente da República sobre se vai ou se fica na sucessão de si mesmo.
São problemáticas as referências do que acontece a todos e a
cada um. Dou o exemplo do Garrincha, que definiu Roma como a
"a cidade em que o seu Zezé Moreira perdeu as chuteiras". Bem
ou mal, é uma referência.
Há também aquela aldeia que
serviu de cenário para um dos
contos de Tchecov: situada num
buraco, Ukleyevo só podia ser vista pelos que passavam na estrada
por causa do campanário da igreja e das chaminés das fábricas de
chita.
Quando o viajante perguntava
que aldeia era aquela, recebia a
informação: "É onde Cántor comeu todo o caviar, num funeral".
Segundo constava, nas exéquias
do moleiro Kostiukov, o mais velho dos Cántor acabou com o caviar fresco que estava sendo servido. Vinte anos depois, Cántor estava morto, mas era o único fato
que se tinha a relatar sobre Ukleyevo.
O ano que está acabando em
certo sentido será lembrado mais
ou menos como a aldeia de Tchecov. Não será diferente de anos
passados e futuros, haverá sempre
um esganado que comerá todo o
caviar da festa -festa não, do funeral de alguém.
Quem lembra a passagem do
ano de 1242 para 1243? Muita coisa aconteceu naquele remoto ano,
mas não havia imprensa, televisão e internet, as coisas aconteciam, mas demoravam não apenas a acontecer, mas a dar notícia
de seu acontecimento.
Em nosso tempo, as coisas acontecem antes mesmo de acontecerem -o que não chega a ser bom
nem mau, é apenas uma conseqüência da afobação geral que
costuma antecipar as coisas, inclusive a sucessão presidencial
que ainda está longe, mas parece
que será amanhã. Desde que haja
sucessão, será bom. Ruim é quando não acontece.
Vamos por partes, na velha prática inaugurada, segundo dizem,
por Jack, o Estripador. No plano
mundial, acho que o fato transcendental que equivale às chuteiras do Zezé Moreira perdidas em
Roma e ao caviar das exéquias do
moleiro Kostiukov foi aquele chinês que, num campeonato em
Nova York, tomou 25 chopes duplos em apenas 23 segundos -recorde que entrou naquele livro
extravagante que registra façanhas iguais e inúteis.
No plano nacional, sou mais
aquela cueca que acumulou, a
seu ofício específico de cueca, a
função de caixa dois cheia de dólares para um parente de autoridade federal. Não parece, mas
não é todo dia que uma cueca
exerce missão que vai além de
suas atribuições.
No plano municipal, acho que o
mais importante ainda está para
acontecer. Mesmo assim, a posteridade se lembrará de 2005, na jurisdição da cidade do Rio de Janeiro, como o ano em que uma
bala perdida foi achada dentro
do crânio de uma senhora que assistia à TV. Pelo absurdo, é o fato
que mais se aproxima do caviar
das exéquias de Kostiukov. Pena
que não exista um Tchecov para
registrá-lo devidamente, o cronista aqui presente nem se atreve a
mister tão importante.
Finalmente, no plano pessoal,
acho que o fato que me marcou
foi um equívoco meio policial e
meio literário. Vinha eu do aeroporto do Galeão quando uma
blitz do trânsito, na base de um
em cada 50 veículos, obrigou-me
a parar no acostamento. O guarda pediu-me os documentos, tudo
em ordem. Ele mandou que eu
abrisse a mala, verificou que não
havia cadáver nem droga. Fuçou,
fuçou, até que descobriu o extintor de incêndio. Estava com o prazo de validade vencido.
Fez cara vitoriosa e disse que ia
mandar rebocar o carro sei lá para onde. Argumentei contra. A
etiqueta do extintor estava borrada, a data podia ser 2004 ou 2006,
na dúvida, eu podia ser absolvido
de tão grave falta. Mas o guarda
insistiu e, percebendo que eu resistia como um herói da retirada
de Laguna, chamou o tenente que
comandava a operação.
Veio o oficial e, por Júpiter!,
bronqueou não comigo, mas com
o subordinado: "Então você faz
isso com ele? É o Fernando Sabino, gente boa, deixa passar".
Normalmente, eu tentaria esclarecer o fato, mas estava sendo
beneficiado pela confusão, da
qual sempre se aproveita alguma
coisa, segundo Jerry Lewis num
de seus filmes mais antigos. Agradeci com poucas, mas bastantes
palavras e voltei ao volante. O oficial aproximou-se e falou baixinho, para não ser ouvido pelo
guarda:
-Interessante. Eu pensava que
o senhor havia morrido, li isso em
algum lugar, acho que vi até na
televisão...
Fiz cara benevolente, não, de
jeito algum, como vê, estou vivo,
vivíssimo, com o extintor de incêndio em dia. E aqui entre nós,
de profissional para profissional:
não acredite em tudo o que os jornais dizem e a televisão mostra,
há muita cascata, muita falta de
assunto. De qualquer forma, obrigado.
O oficial agradeceu o conselho e
bateu-me uma continência imerecida.
Texto Anterior: Música: Surf music croata chega ao Brasil via novela Índice
|