São Paulo, sexta-feira, 30 de dezembro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

2005, ano de caviar e de extintor de incêndio

Tempo de fazer retrospectivas do ano que passou e nada demais que eu faça a minha. Desconfio das demais, são óbvias e repetitivas, mas é da natureza e função de qualquer exame sobre o passado recente -tão recente que ainda nem passou realmente, como o caso do "mensalão" e as dúvidas do presidente da República sobre se vai ou se fica na sucessão de si mesmo.
São problemáticas as referências do que acontece a todos e a cada um. Dou o exemplo do Garrincha, que definiu Roma como a "a cidade em que o seu Zezé Moreira perdeu as chuteiras". Bem ou mal, é uma referência.
Há também aquela aldeia que serviu de cenário para um dos contos de Tchecov: situada num buraco, Ukleyevo só podia ser vista pelos que passavam na estrada por causa do campanário da igreja e das chaminés das fábricas de chita.
Quando o viajante perguntava que aldeia era aquela, recebia a informação: "É onde Cántor comeu todo o caviar, num funeral".
Segundo constava, nas exéquias do moleiro Kostiukov, o mais velho dos Cántor acabou com o caviar fresco que estava sendo servido. Vinte anos depois, Cántor estava morto, mas era o único fato que se tinha a relatar sobre Ukleyevo.
O ano que está acabando em certo sentido será lembrado mais ou menos como a aldeia de Tchecov. Não será diferente de anos passados e futuros, haverá sempre um esganado que comerá todo o caviar da festa -festa não, do funeral de alguém.
Quem lembra a passagem do ano de 1242 para 1243? Muita coisa aconteceu naquele remoto ano, mas não havia imprensa, televisão e internet, as coisas aconteciam, mas demoravam não apenas a acontecer, mas a dar notícia de seu acontecimento.
Em nosso tempo, as coisas acontecem antes mesmo de acontecerem -o que não chega a ser bom nem mau, é apenas uma conseqüência da afobação geral que costuma antecipar as coisas, inclusive a sucessão presidencial que ainda está longe, mas parece que será amanhã. Desde que haja sucessão, será bom. Ruim é quando não acontece.
Vamos por partes, na velha prática inaugurada, segundo dizem, por Jack, o Estripador. No plano mundial, acho que o fato transcendental que equivale às chuteiras do Zezé Moreira perdidas em Roma e ao caviar das exéquias do moleiro Kostiukov foi aquele chinês que, num campeonato em Nova York, tomou 25 chopes duplos em apenas 23 segundos -recorde que entrou naquele livro extravagante que registra façanhas iguais e inúteis.
No plano nacional, sou mais aquela cueca que acumulou, a seu ofício específico de cueca, a função de caixa dois cheia de dólares para um parente de autoridade federal. Não parece, mas não é todo dia que uma cueca exerce missão que vai além de suas atribuições.
No plano municipal, acho que o mais importante ainda está para acontecer. Mesmo assim, a posteridade se lembrará de 2005, na jurisdição da cidade do Rio de Janeiro, como o ano em que uma bala perdida foi achada dentro do crânio de uma senhora que assistia à TV. Pelo absurdo, é o fato que mais se aproxima do caviar das exéquias de Kostiukov. Pena que não exista um Tchecov para registrá-lo devidamente, o cronista aqui presente nem se atreve a mister tão importante.
Finalmente, no plano pessoal, acho que o fato que me marcou foi um equívoco meio policial e meio literário. Vinha eu do aeroporto do Galeão quando uma blitz do trânsito, na base de um em cada 50 veículos, obrigou-me a parar no acostamento. O guarda pediu-me os documentos, tudo em ordem. Ele mandou que eu abrisse a mala, verificou que não havia cadáver nem droga. Fuçou, fuçou, até que descobriu o extintor de incêndio. Estava com o prazo de validade vencido.
Fez cara vitoriosa e disse que ia mandar rebocar o carro sei lá para onde. Argumentei contra. A etiqueta do extintor estava borrada, a data podia ser 2004 ou 2006, na dúvida, eu podia ser absolvido de tão grave falta. Mas o guarda insistiu e, percebendo que eu resistia como um herói da retirada de Laguna, chamou o tenente que comandava a operação.
Veio o oficial e, por Júpiter!, bronqueou não comigo, mas com o subordinado: "Então você faz isso com ele? É o Fernando Sabino, gente boa, deixa passar".
Normalmente, eu tentaria esclarecer o fato, mas estava sendo beneficiado pela confusão, da qual sempre se aproveita alguma coisa, segundo Jerry Lewis num de seus filmes mais antigos. Agradeci com poucas, mas bastantes palavras e voltei ao volante. O oficial aproximou-se e falou baixinho, para não ser ouvido pelo guarda:
-Interessante. Eu pensava que o senhor havia morrido, li isso em algum lugar, acho que vi até na televisão...
Fiz cara benevolente, não, de jeito algum, como vê, estou vivo, vivíssimo, com o extintor de incêndio em dia. E aqui entre nós, de profissional para profissional: não acredite em tudo o que os jornais dizem e a televisão mostra, há muita cascata, muita falta de assunto. De qualquer forma, obrigado.
O oficial agradeceu o conselho e bateu-me uma continência imerecida.


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