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MANUEL DA COSTA PINTO
Viver engorda
Cíntia Moscovich usa neurose da obesidade como mote para romance que
mistura memória e invenção
TUDO CONSPIRA contra o novo
livro da gaúcha Cíntia Moscovich. O título sugere um manual de auto-ajuda contra os excessos de fim de ano. O tom confessional lembra um diário de adolescente. A verdadeira literatura, porém,
resiste a tudo, até mesmo aos impulsos suicidas de uma escritora que
finge se desviar de sua implacável
vocação ficcional.
Estrutura e conteúdo podem lembrar a "Carta ao Pai", de Kafka. A
exemplo do autor judeu-tcheco, que
se dirige ao "pater familias" para expor a chaga que o condena à errância
literária, Moscovich elege a mãe como leitora ideal de seu relato. O tom
de "Por que Sou Gorda, Mamãe?",
contudo, está mais para Woody
Allen -a começar pela figura melodramática da matriarca e pela hipocondria ("esse pânico ritual muito
próprio dos judeus").
O elemento deflagrador é apresentado no prólogo, que firma com
os leitores um pacto ficcional: tudo o
que virá a seguir é matéria autobiográfica costurada de modo a explicar
como a autora se deixou dominar
por um velho fantasma -a obesidade-, engordando 22 quilos em quatro anos.
Entre visitas ao endocrinologista
e academias de ginástica ("confrarias da adiposidade" que aguçam o
sentimento de exclusão), Moscovich vaza os acontecimentos desse
"romance familiar dos neuróticos"
(para citar outro judeu que dissecou
a dinâmica afetiva do recalque e do
ressentimento).
A história da Vovó Magra (que
carrega as marcas da diáspora e de
uma paixão irrealizada), a morte
prematura do pai (fazendo com que
a adolescência da protagonista fosse
seqüestrada pelo "terror amoroso"
da mãe) e o microcosmo da comunidade asquenazita de Porto Alegre
compõem um cenário imantado pela língua ídiche, pelas tradições religiosas e culinárias (um cardápio de
varenikes, guefiltefish, borscht e outras iguarias do Leste Europeu).
Aquilo que se transmite de geração em geração, porém, é menos palpável. "Eu queria tocar de uma vez
no miolo duro da vida", diz em certo
momento essa escritora que, na esteira de Clarice Lispector, destrincha cada movimento da consciência
para estar perto do coração selvagem das coisas. Nessas lembranças
familiares, importa sobretudo o modo como os papéis vão se espelhando e as palavras deslizam numa correia de transmissão simbólica, que é
também uma espécie de grilhão.
"Continuar vivendo é algo que pode tornar uma pessoa alheia de si
mesmo. Viver engorda." A obesidade é o "correlato objetivo", a metáfora viva dessa existência cuja mecânica consiste em se desfigurar para tapar seus buracos.
Ocorre que isso também define
uma poética que deverá perpetuamente "purificar a memória em invenção", suturando as fissuras do
ser com uma "cerzidura que, embora invente nos pontos muito miúdos
e caprichosos da memória, me dá a
sensação de um arranjo ordinário e
discrepante, eterna precariedade,
eterno improviso".
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