|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Conflito interno domina obra de Llosa
"Dicionário Amoroso da América Latina" reúne crônicas e artigos de escritor peruano, da sua juventude aos dias de hoje
Convicções demais poderiam prejudicar a obra, mas mescla de textos de diferentes épocas expõe contradições interessantes
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os artigos e as crônicas
de Mario Vargas Llosa
costumam provocar
aquele cansaço associado aos
textos de autores que têm certezas demais, convicções demais, explicações demais. Reunidos às dezenas neste "Dicionário Amoroso da América Latina", contudo, eles escapam
dessa sina: ao misturar coisas
produzidas recentemente com
outras escritas na juventude,
aqui reproduzidas em ordem
alfabética, Llosa impõe ao volume uma saudável dose de conflito interno. E tudo fica mais
interessante.
Os assuntos tratados são os
mais variados, de modo geral
tendo como único ponto comum a ligação com algum aspecto da América Latina, como
o título já explicita. O peruano
fala de países, de tradições locais, de experiências que vivenciou e pessoas que conheceu, de
seus livros, de outros escritores
(com especiais deferências a
Borges, que inventa uma nova
forma de expressão literária em
espanhol, e ao adversário político García Márquez, autor de
"Cem Anos de Solidão", romance que ele discute).
No que diz respeito ao Brasil,
há, entre outros, verbetes sobre
Jorge Amado, Euclides da Cunha, Rubem Fonseca, Guimarães Rosa, Rio de Janeiro e Sérgio Vieira de Mello, bem como
um dedicado ao próprio país.
Quando fala de literatura, tudo
anda bem, quando se distancia
dela, surgem, como parece ser
quase inevitável, os lugares-comuns usuais. Por exemplo (verbete "Brasil", sobre futebol):
"Nesse esporte se expressa de
maneira privilegiada a capacidade criativa de sua gente, a
alegria, a picardia, o ritmo, a
sensualidade e a graça, virtudes
que também estão vivas e
atuantes em sua música". Em
benefício do autor, diga-se que,
ao comentar no verbete "Rio de
Janeiro" o Carnaval, a análise
nada original convive com um
texto muitíssimo bem escrito.
Para quem se interessa por literatura, e especificamente pela literatura de Vargas Llosa,
que, aliás, lançou recentemente um livro admirável, "Travessuras da Menina Má" (ed. Alfaguara), o "Dicionário" traz uma
série de entradas excelentes,
tratando desde aspectos técnicos até análises detalhadas de
como chegou a certas soluções
para suas obras.
No verbete "Los Cachorros",
para citar um caso assim, o escritor descreve como foi difícil
arrumar uma forma crível de lidar com a história do menino
castrado por uma mordida de
cão e de como isso afetaria sua
vida posterior ("era tão brutal
que me parecia impossível dotá-la de poder de persuasão").
Chega então a uma espécie de
narração coletiva, que resolve
totalmente o problema (o livro
foi publicado no Brasil com o título de "Os Filhotes").
Llosa fica devendo, por fim,
uma explicação mais convincente dessa "distinção" da
América Latina, da qual nem o
prólogo nem o verbete que leva
esse título dão conta. Não será,
afinal, contraditório que um
homem tão avesso a nacionalismos reinstaure, em dimensão
ampliada, esse tipo de valorização identitária?
Adriano Schwartz é professor de literatura da
Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP
DICIONÁRIO AMOROSO DA AMÉRICA LATINA
Autor: Mario Vargas Llosa
Tradução: Wladir Dupont e Hortencia Lencastre
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 59,90 (368 págs.)
Texto Anterior: Trecho Próximo Texto: Alguns verbetes Índice
|