São Paulo, sábado, 30 de dezembro de 2006

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Conflito interno domina obra de Llosa

"Dicionário Amoroso da América Latina" reúne crônicas e artigos de escritor peruano, da sua juventude aos dias de hoje

Convicções demais poderiam prejudicar a obra, mas mescla de textos de diferentes épocas expõe contradições interessantes


ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os artigos e as crônicas de Mario Vargas Llosa costumam provocar aquele cansaço associado aos textos de autores que têm certezas demais, convicções demais, explicações demais. Reunidos às dezenas neste "Dicionário Amoroso da América Latina", contudo, eles escapam dessa sina: ao misturar coisas produzidas recentemente com outras escritas na juventude, aqui reproduzidas em ordem alfabética, Llosa impõe ao volume uma saudável dose de conflito interno. E tudo fica mais interessante.
Os assuntos tratados são os mais variados, de modo geral tendo como único ponto comum a ligação com algum aspecto da América Latina, como o título já explicita. O peruano fala de países, de tradições locais, de experiências que vivenciou e pessoas que conheceu, de seus livros, de outros escritores (com especiais deferências a Borges, que inventa uma nova forma de expressão literária em espanhol, e ao adversário político García Márquez, autor de "Cem Anos de Solidão", romance que ele discute).
No que diz respeito ao Brasil, há, entre outros, verbetes sobre Jorge Amado, Euclides da Cunha, Rubem Fonseca, Guimarães Rosa, Rio de Janeiro e Sérgio Vieira de Mello, bem como um dedicado ao próprio país.
Quando fala de literatura, tudo anda bem, quando se distancia dela, surgem, como parece ser quase inevitável, os lugares-comuns usuais. Por exemplo (verbete "Brasil", sobre futebol): "Nesse esporte se expressa de maneira privilegiada a capacidade criativa de sua gente, a alegria, a picardia, o ritmo, a sensualidade e a graça, virtudes que também estão vivas e atuantes em sua música". Em benefício do autor, diga-se que, ao comentar no verbete "Rio de Janeiro" o Carnaval, a análise nada original convive com um texto muitíssimo bem escrito.
Para quem se interessa por literatura, e especificamente pela literatura de Vargas Llosa, que, aliás, lançou recentemente um livro admirável, "Travessuras da Menina Má" (ed. Alfaguara), o "Dicionário" traz uma série de entradas excelentes, tratando desde aspectos técnicos até análises detalhadas de como chegou a certas soluções para suas obras.
No verbete "Los Cachorros", para citar um caso assim, o escritor descreve como foi difícil arrumar uma forma crível de lidar com a história do menino castrado por uma mordida de cão e de como isso afetaria sua vida posterior ("era tão brutal que me parecia impossível dotá-la de poder de persuasão").
Chega então a uma espécie de narração coletiva, que resolve totalmente o problema (o livro foi publicado no Brasil com o título de "Os Filhotes").
Llosa fica devendo, por fim, uma explicação mais convincente dessa "distinção" da América Latina, da qual nem o prólogo nem o verbete que leva esse título dão conta. Não será, afinal, contraditório que um homem tão avesso a nacionalismos reinstaure, em dimensão ampliada, esse tipo de valorização identitária?


Adriano Schwartz é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP

DICIONÁRIO AMOROSO DA AMÉRICA LATINA    
Autor: Mario Vargas Llosa
Tradução: Wladir Dupont e Hortencia Lencastre
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 59,90 (368 págs.)


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