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LITERATURA/CRÍTICA
"Três Poemas sobre o Êxtase" analisa poesia de John Donne, San Juan de La Cruz e Richard Wagner
Ensaio de Spitzer vasculha a evasão da alma
MARCELO COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Na origem da palavra "êxtase", explica o crítico e filólogo Leo Spitzer (1887-1960), está o
conceito de "partir", "sair". Num
sentido mais específico, trata-se
do movimento pelo qual a alma se
separa do corpo para unir-se a alguma realidade superior.
O curto e fascinante ensaio de
Spitzer, originalmente publicado
em 1949, analisa em detalhe o modo com que três autores muito diferentes entre si -John Donne,
San Juan de La Cruz e Richard
Wagner- exprimiram esse estado de evasão da alma.
"O Êxtase", do poeta metafísico
inglês John Donne (1572-1631),
recebe um tratamento minucioso
e, no final das contas, bastante antipático por parte de Spitzer. As 19
estrofes do poema descrevem,
numa sucessão caleidoscópica de
imagens, a comunhão espiritual
de dois amantes. Mãos entrelaçadas, olhos nos olhos, imóveis como estátuas, os amantes sentem
pouco a pouco que "alma com alma negocia", até atingir um estado de completa fusão espiritual.
"Para convencer seus leitores, o
poeta adota uma técnica quantitativa: ele multiplica as evidências
de modo a martelar suas convicções", diz Spitzer. Assim, as almas
dos amantes são sucessivamente
comparadas a exércitos que se
confrontam, substâncias químicas que se misturam, cordões que
se entrelaçam... até que o poema
acaba, numa espécie de esgotamento da inspiração do autor.
Faltaria ao texto de Donne, um
protestante, a "profundidade da
experiência mística", que Spitzer
identificará nos poemas do monge carmelita San Juan de la Cruz
(1542-1591) e no panteísmo romântico de Richard Wagner
(1813-1883).
As análises que Spitzer faz de
"En una Noche Escura", do místico espanhol, e da cena da morte
de amor em "Tristão e Isolda", de
Wagner, são bem mais entusiásticas. É como se a estrutura de
"Três Poemas sobre o Êxtase" seguisse, ela própria, um ritmo espiritual ascendente, partindo da paralisia alegórica de Donne para
chegar, em San Juan de La Cruz, à
palpitante e apaixonada alma que
se entrega a seu divino noivo:
"Quedéme y olvidéme,/ El rostro
recliné sobre el Amado;/Cesó todo, y dejéme,/ Dejando my cuidado/ Entre las azucenas olvidado".
Desta "apresentação do amor
místico em termos que poderiam
descrever o prazer erótico", passamos ao "erotismo santificado"
de Wagner. Isolda, ao encontrar o
cadáver de Tristão, exaure-se "no
mar da auto-aniquilação (...) como se o cúmulo da liberdade só
pudesse ser conquistado com a
descida às profundezas".
A interpretação do libreto wagneriano talvez seja o momento
mais inspirado do livro; sem desmerecer a refinada análise dos
tempos verbais e dos pressupostos teológicos da "Noche Escura",
os momentos mais iluminados do
livro estão na surpreendente análise de Spitzer das inovações literárias e não apenas musicais
-wagnerianas, como suas curiosas "onomatopéias sintáticas".
Quanto a John Donne, pode-se
dizer que foi muito maltratado
pela interpretação spitzeriana. O
final do seu poema nada tem de
decepcionante ou de pouco inspirado. Mais do que a repetição de
metáforas em torno de um mesmo tema, as últimas estrofes de
"O êxtase" claramente sugerem
que a união mística das almas deva transformar-se, para ser completa, em congraçamento sexual.
Onde Spitzer vê rigidez alegórica,
há malícia e ironia -o que a tradução de Augusto de Campos, estampada ao lado do original inglês, ajuda a perceber. Sem que se
possa atinar por que, essa leitura
mais "marota" de Donne é rejeitada explicitamente pelo crítico, o
que só serve para piorar o poema.
Samuel Titan Jr. traduz o ensaio
de Spitzer com elegância; é de
Carlito Azevedo a boa tradução
de "En una Noche Escura". Infelizmente, a transcrição dos versos
de Wagner necessitaria de ampla
revisão antes de vir a público:
"ihr" ("vós") vira "ele", "wie"
("como") vira "enquanto", e só
pela paráfrase de Spitzer é que fica
acessível o sentido das primeiras
estrofes do original alemão.
Três Poemas sobre o Êxtase
Autor: Leo Spitzer
Tradução: Samuel Titan Jr.
Editora: Cosac & Naify (94 págs., R$ 25)
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