São Paulo, sábado, 31 de janeiro de 2004

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LITERATURA/CRÍTICA

"Três Poemas sobre o Êxtase" analisa poesia de John Donne, San Juan de La Cruz e Richard Wagner

Ensaio de Spitzer vasculha a evasão da alma

MARCELO COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Na origem da palavra "êxtase", explica o crítico e filólogo Leo Spitzer (1887-1960), está o conceito de "partir", "sair". Num sentido mais específico, trata-se do movimento pelo qual a alma se separa do corpo para unir-se a alguma realidade superior.
O curto e fascinante ensaio de Spitzer, originalmente publicado em 1949, analisa em detalhe o modo com que três autores muito diferentes entre si -John Donne, San Juan de La Cruz e Richard Wagner- exprimiram esse estado de evasão da alma.
"O Êxtase", do poeta metafísico inglês John Donne (1572-1631), recebe um tratamento minucioso e, no final das contas, bastante antipático por parte de Spitzer. As 19 estrofes do poema descrevem, numa sucessão caleidoscópica de imagens, a comunhão espiritual de dois amantes. Mãos entrelaçadas, olhos nos olhos, imóveis como estátuas, os amantes sentem pouco a pouco que "alma com alma negocia", até atingir um estado de completa fusão espiritual.
"Para convencer seus leitores, o poeta adota uma técnica quantitativa: ele multiplica as evidências de modo a martelar suas convicções", diz Spitzer. Assim, as almas dos amantes são sucessivamente comparadas a exércitos que se confrontam, substâncias químicas que se misturam, cordões que se entrelaçam... até que o poema acaba, numa espécie de esgotamento da inspiração do autor.
Faltaria ao texto de Donne, um protestante, a "profundidade da experiência mística", que Spitzer identificará nos poemas do monge carmelita San Juan de la Cruz (1542-1591) e no panteísmo romântico de Richard Wagner (1813-1883).
As análises que Spitzer faz de "En una Noche Escura", do místico espanhol, e da cena da morte de amor em "Tristão e Isolda", de Wagner, são bem mais entusiásticas. É como se a estrutura de "Três Poemas sobre o Êxtase" seguisse, ela própria, um ritmo espiritual ascendente, partindo da paralisia alegórica de Donne para chegar, em San Juan de La Cruz, à palpitante e apaixonada alma que se entrega a seu divino noivo: "Quedéme y olvidéme,/ El rostro recliné sobre el Amado;/Cesó todo, y dejéme,/ Dejando my cuidado/ Entre las azucenas olvidado".
Desta "apresentação do amor místico em termos que poderiam descrever o prazer erótico", passamos ao "erotismo santificado" de Wagner. Isolda, ao encontrar o cadáver de Tristão, exaure-se "no mar da auto-aniquilação (...) como se o cúmulo da liberdade só pudesse ser conquistado com a descida às profundezas".
A interpretação do libreto wagneriano talvez seja o momento mais inspirado do livro; sem desmerecer a refinada análise dos tempos verbais e dos pressupostos teológicos da "Noche Escura", os momentos mais iluminados do livro estão na surpreendente análise de Spitzer das inovações literárias e não apenas musicais -wagnerianas, como suas curiosas "onomatopéias sintáticas".
Quanto a John Donne, pode-se dizer que foi muito maltratado pela interpretação spitzeriana. O final do seu poema nada tem de decepcionante ou de pouco inspirado. Mais do que a repetição de metáforas em torno de um mesmo tema, as últimas estrofes de "O êxtase" claramente sugerem que a união mística das almas deva transformar-se, para ser completa, em congraçamento sexual. Onde Spitzer vê rigidez alegórica, há malícia e ironia -o que a tradução de Augusto de Campos, estampada ao lado do original inglês, ajuda a perceber. Sem que se possa atinar por que, essa leitura mais "marota" de Donne é rejeitada explicitamente pelo crítico, o que só serve para piorar o poema.
Samuel Titan Jr. traduz o ensaio de Spitzer com elegância; é de Carlito Azevedo a boa tradução de "En una Noche Escura". Infelizmente, a transcrição dos versos de Wagner necessitaria de ampla revisão antes de vir a público: "ihr" ("vós") vira "ele", "wie" ("como") vira "enquanto", e só pela paráfrase de Spitzer é que fica acessível o sentido das primeiras estrofes do original alemão.


Três Poemas sobre o Êxtase
    
Autor: Leo Spitzer
Tradução: Samuel Titan Jr.
Editora: Cosac & Naify (94 págs., R$ 25)



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