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Lobo Antunes reinventa Angola em novo livro
"Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo", do romancista português, evoca guerra civil
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
O português António Lobo Antunes, 61, é um escritor dedicado a
três coisas. A Angola, país que
presenciou ser arrasado pela
guerra e que tornou a eleger "território ficcional" em seu novo romance, "Boa Tarde às Coisas
Aqui em Baixo".
À leitura, prazer mantido ao
longo dos anos, em detrimento de
outros, como o futebol, que hoje
não gosta de ver "nem na televisão". E ao aperfeiçoamento da arte narrativa, que o obriga a uma
rotina de mais de 12 horas diárias
de labuta.
O ritmo exaustivo decorre por
um lado da sensação de que é preciso correr contra o tempo, que
escoa muito depressa. Por outro,
da descoberta, proporcionada pelo ofício e corroborada na experiência de outros escritores, de
que "o romance é sobretudo trabalho".
"Trabalho" é uma palavra que
escapa com facilidade dos lábios
do romancista, que se sente mais
à vontade quando fala de sua criação. "Um livro começa com um
som, um cheiro, coisas muito difusas que, pouco a pouco, vão
confluindo e cristalizando", diz o
autor, em entrevista à Folha.
Em certa altura, o artista percebe que o livro está pronto para começar a ser escrito. Inicia-se um
processo "difícil e doloroso" de
determinar o tom e a cor certos.
"É como ter água no soalho, sem
que se tenha localizado o desnível
por onde ela possa escoar: o problema está em encontrar essa calha por onde a água pode correr",
explica.
No início da carreira, Lobo Antunes preocupava-se muito mais
com a arquitetura do romance,
que planejava rigorosamente. Depois, começou "a entender que o
romance é um organismo vivo,
que age independente de você,
pois tem suas próprias regras". O
"desafio" está em "lutar contra a
resistência do material que se
opõe a si".
Lobo Antunes afirma que é preciso ser absolutamente "implacável" com a própria obra: "Tudo
aquilo que não se agüenta, vai fora". O que ele procura obter é um
efeito próximo ao da poesia ou da
música: "Como Schubert, digamos, naquelas peças para piano
em que cada nota parece que está
tocando um nervo sensível, um
nervo exposto num dente".
O romancista confessa ter trazido uma "grande ferida da África",
que conheceu quando serviu na
guerra da Angola. "Vi Luanda,
uma cidade tão bonita quanto o
Rio de Janeiro, ser destruída", diz.
Mas faz questão de frisar que não
voltou mais lá. A Angola de "Boa
Tarde" é um país "inventado".
O importante, para ele, é criar
um espaço ficcional que funciona
como "símbolo de outras coisas".
"Gosto de descobrir escritores
que me ajudam a conhecer a mim
mesmo, que me mostram o país
que eu sou, e a casa cheia de portas fechadas que eu sou, porque
no fundo vivemos numa parte
muito pequena de nós mesmos."
Dentre esses escritores, Lobo
Antunes revela predileção pelos
poetas brasileiros ("para mim, a
grande poesia do século 20 em
língua portuguesa foi escrita no
Brasil") e Clarice Lispector ("sem
dúvida a maior romancista de
nosso idioma"). Ele destaca também Herman Melville e Joseph
Conrad, "durante muito tempo
subestimado como escritor de
aventuras", além do ficcionista
americano William Gaddis, morto em 1998, ainda "desconhecido
em seu país de origem".
Lobo Antunes também sofreu
com o desconhecimento. "Em
princípio não me queriam em
Portugal, depois ninguém me
queria nos outros países." Do
Brasil, onde parte de sua família
mora no Rio de Janeiro, o escritor
preferia guardar distância. Hoje
tudo mudou. A editora Objetiva
adquiriu direitos de publicação de
toda a obra do autor, que foi premiado pela Associação Portuguesa de Escritores e pela União Latina de Literatura.
O próximo romance, no qual
vem trabalhando há dois anos,
deve chamar-se "Eu Hei-de Amar
uma Pedra" frase tirada de uma
moda do Alentejo. Mais uma vez
não há um fio narrativo preciso.
Para esse escritor caudaloso, que
diz precisar "de espaço para ocupar", isso não representa um problema, "pois se você pudesse dizer do que se trata o livro, não valia a pena escrevê-lo".
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