São Paulo, quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

A dúvida conservadora

A crença de que os nossos desejos bastam para alterar a realidade ignora o papel subversivo do imponderável

LUIZ FELIPE Pondé concede entrevista a Rafael Cariello na Folha do sábado passado e eu não posso deixar de sentir alguma admiração e certa nostalgia.
A admiração é óbvia. Não é todos os dias que apanhamos um conservador pela frente, disposto a confrontar o derradeiro paradoxo: será possível defender uma teoria conservadora quando o conservadorismo se define, precisamente, pela sua natureza antiteórica?
Não é jogo de palavras e eu não vou repetir, como Disraeli em carta a Lady Bradford, que "existem muitos esquemas, e muitos planos, e muitas razões para não haver esquemas nem planos". Um dos motivos por que o conservadorismo tem má fama é que ele não possui uma cartilha de respostas aos problemas da vida social ou humana. Um liberal pode proclamar a liberdade como fim último de suas campanhas. Um socialista pode acreditar na igualdade (ou "eqüidade") como valor das suas "engenharias de Estado". E o conservador?
O conservador tem certa relutância, e mesmo repulsa, em reduzir a complexidade da natureza humana a uma lista de supermercado. Claro que há conservadores e conservadores: Burke não pode ser confundido com um reacionário ultramontano, como De Maistre. Mas, se o conservadorismo passa pela dúvida prudente, é Burke quem salta das palavras de Pondé.
Por isso, a nostalgia também entrou na entrevista: Burke foi meu companheiro de estrada. E quando lemos Burke, vemos em forma de letra o que apenas podemos intuir em privado. Porque o conservadorismo começa por ser assunto privado: uma "disposição", como diria Oakeshott, que impede a arrogância fatal de entender o mundo como prolongamento dos nossos desejos. Ou, como Pondé metaforiza, a crença de que a menina de 14 anos pode criar um mundo que não conhece e não lhe pertence.
Chegamos, vivemos, passamos. Há um contrato invisível entre vivos, mortos e os que estão para vir que impede o entendimento da atividade política como gesto revolucionário e total. Pondé fala da "dúvida conservadora" e sublinha a imperfeição moral e intelectual dos seres humanos. Fato. Mas a "dúvida conservadora" não se alimenta só das ambições racionalistas que reduzem a complexidade do mundo a uma "técnica", amputando o que não pode ser racionalmente provado.
A "dúvida conservadora" instala-se, também, pois a contingência é inescapável. E a crença de que os nossos desejos bastam para alterar a realidade ignora o papel do imponderável na subversão do ideal abstrato. Em 1789, quando um parlamentar francês perguntou a Burke sobre os festejos de Paris, ele avisava: não há certeza de que a busca da utopia terrena não acabe por degenerar na violência e na mortandade. As palavras de Burke (e a "dúvida" levantada) eram escritas quando a República, a execução dos monarcas, Robespierre e o Terror não passavam pela cabeça otimista dos revolucionários. Infelizmente, ontem como hoje, nunca passam.


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