São Paulo, sábado, 31 de janeiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Antropofagia

O escritor Alberto Mussa recria mito em que os tupinambás explicavam e davam sentido à sua prática canibal e afirma que brasileiros deveriam dar mais atenção à cultura ameríndia

Reprodução
'Mulher Tupinambá', de Albert Eckhout (1610-1665); grupo impressionou europeus no séc. 16


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Era uma vez um branco que queria ser negro e descobriu que era índio.
E que acaba de lançar "Meu Destino é Ser Onça" (Record), recriação de um mito dos índios tupinambás sobre a origem do mundo, dos homens e da característica mais assustadora desse grupo que habitava a costa brasileira à época do Descobrimento: o hábito de comer, literalmente, os inimigos capturados em guerra.
O autor é Alberto Mussa, 47, que há alguns anos resolveu se submeter a uma pesquisa de ancestralidade feita pelo geneticista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Sérgio Danilo Pena.
Como o DNA presente nas mitocôndrias das células de uma pessoa são passados exclusivamente de mães para filhos, é possível, ao identificá-lo, traçar uma espécie de "linhagem" materna. Por meio dessa informação genética pode-se então saber se uma pessoa tem alguma ascendência negra, indígena ou branca.
"Mandei por curiosidade. Fiz o teste meu e do meu filho", explica Mussa. "O que eu estava buscando, na verdade, era uma ancestralidade africana. Sempre fui muito ligado à cultura afro-brasileira. Desde jovem frequentei candomblés, vivi muito em escola de samba, fui capoeirista -tenho um irmão que é mestre, e fui eu que ensinei capoeira a ele", afirma o escritor, autor de quatro obras de ficção e que já criou narrativas baseando-se nas tradições afro-brasileira e árabe.
Mas o resultado do teste não foi o esperado. "Descobri que era indígena", ele diz.
Mussa argumenta que não é só ele que ignorava parte de sua origem. Os brasileiros em geral, afirma, ainda insistem em negar sua relação com os grupos indígenas que habitam -ou habitaram- o país.
Antes de tudo, ela é biológica, como ele explica na apresentação do livro: "Estudos genéticos recentes [...] demonstram que cerca de 33% dos brasileiros autodenominados "brancos" descendem diretamente de uma antepassada indígena, por linha materna. Entre os classificáveis como "negros", esse percentual é de 12%".
Mas a herança é também histórica -foram alianças com grupos indígenas rivais que determinaram as forças em jogo nas batalhas entre portugueses e franceses no século 16 pelo controle do Rio de Janeiro-, além de cada vez mais cultural.
Boa parte da melhor produção das ciências sociais no país atualmente é resultado da atenção dada por antropólogos a formas de compreensão da realidade, praticadas por povos ameríndios, que são bastante distintas daquelas de origem europeia -mas que permitem repensar fundamentos importantes da filosofia ocidental.
Outros pesquisadores, como o antropólogo Pedro Cesarino e o professor de literatura Sérgio Medeiros, da Universidade Federal de Santa Catarina, têm se dedicado a traduzir e recriar mitos de grupos indígenas, dando atenção a suas características estéticas, formais.
Parecem cumprir assim, finalmente, aquela que talvez seja a mais conhecida fórmula literária e cultural do Brasil no último século -a ideia de "antropofagia". Estratégia que insistiu, por muito tempo, em deixar de fora da "captura" justamente o pensamento e a produção artística daqueles que deram origem à metáfora.

Vingança
No mito restaurado por Mussa percebe-se que a guerra, a vingança e a antropofagia entre grupos tupinambás rivais eram comportamentos fundamentais para esses povos no início da colonização brasileira. Era por meio deles que a própria identidade do pequeno grupo local e dos guerreiros se constituía. Eram os inimigos que conferiam "existência" e potência aos tupinambás.
A ideia de que não é possível pensar o "eu" sem o "outro" -que de certa forma vale para qualquer grupamento humano- era levada às últimas consequências por esse povo. E englobava toda a realidade, não somente seus aspectos explicitamente "sociais".
Se vale a definição do antropólogo Claude Lévi-Strauss de que não existe versão última de um mito, de que não existe uma narrativa mais "verdadeira" do que outra, e um mito é, por fim, a soma de todas as suas versões -e as relações entre elas-, então a cultura tupinambá continua, recriada agora pelo índio, de nome árabe, Alberto Mussa.


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.