São Paulo, sábado, 31 de janeiro de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

São Paulo, acordes dissonantes


Nelson Aprobato Filho aposta na valorização do sonoro para redescobrir o cotidiano da cidade


FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

QUEM QUER que se interesse pela vida cotidiana paulistana ganhou no aniversário da cidade um presente e tanto. A edição de parte do espólio iconográfico de Aurélio Becherini, repórter fotográfico pioneiro, nos devolve um registro singular do contraponto entre o ritmo cadenciado das carroças e o frenesi crescente da vida moderna que o atravessava. Em meio a demolições e novos edifícios, à redefinição incessante do traçado urbano na virada do século 20, suas imagens flagram uma gente aturdida entre a pressa e a permanência, cavalos e automóveis recém-apresentados e disputando o mesmo espaço. Aos que dariam um doce para ouvir o que xingava o motorneiro, o bordão dos meninos vendedores de jornais, a conversa dos cavalheiros de palheta esquivando-se do bonde elétrico, aos que suspiram pelas mil palavras e rumores sonegados pelas fotografias, a resposta está em "Kaleidosfone", mestrado do historiador Nelson Aprobato Filho que virou livro, lançado pela Edusp. Na contramão da primazia contemporânea da imagem, Aprobato aposta na valorização do sonoro e da oralidade, efêmera e sufocada pelo alarido, mas igualmente reveladora, para redescobrir o cotidiano da São Paulo "belle époque". Costurando pesquisa minuciosa, combinando comentário e citação de documentos variados (memórias, ficção, poesia, decretos), o autor reencena as muitas paisagens sonoras que se sucederam durante a inédita explosão demográfica paulistana, acompanhando as reações ambíguas dos contemporâneos à convivência entre tempos históricos diversos que expressavam. Dos depoimentos dos viajantes coloniais, para os quais a beleza natural das colinas verdejantes ao redor contrastava com a vida besta, sisuda e provinciana da cidade, tédio entrecortado apenas pelos cincerros e cascos dos animais das tropas, pelo rangido dos carros de boi e repique ocasional dos sinos, às crônicas que registram o novo regime, disciplinador, dos apitos das fábricas, das explosões dos motores dos primeiros automóveis, do rumor de bondes descarrilando, da pianolatria doméstica e dos pregões dos vendedores ambulantes à invasão dos gramofones, Aprobato deslinda as tentativas infrutíferas de legislar sobre a cidade ruidosa. O sabor especial do livro está na vivacidade que confere às fontes contemporâneas, contrastando a ironia de Juó Bananére com a crônica acre de Sylvio Floreal; as memórias do ex-reitor da Universidade de São Paulo, Jorge Americano, com as do ex-operário e historiador autodidata Jacob Penteado; a voracidade opinativa de Monteiro Lobato com os diálogos convincentes de Alcântara Machado. Fecha o volume uma antologia de textos da época, literários na sua maior parte, em que o burburinho urbano ganha primorosa tradução visual. Quem tenha olhos que ouça.



KALEIDOSFONE
Autor: Nelson Aprobato Filho
Editora: Edusp/Fapesp
Quanto: R$ 78 (504 págs.)
Avaliação: ótimo



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