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DRAUZIO VARELLA
O valor da palavra
As leis do crime exaltam os que cumprem sua palavra e execram aqueles que mentem
NASCI NO Brás, em plena Segunda Guerra Mundial. Era
um bairro cinzento, com
ruas de paralelepípedos, cortiços,
apitos de fábricas, molecada jogando bola e homens que saíam ainda
no escuro com a marmita embrulhada em folha de jornal.
Embora meu pai tivesse vindo da
Espanha com dois anos e minha
mãe fosse filha de portugueses, havia tantos imigrantes na vizinhança
que nossa casa era conhecida como
"a dos brasileiros".
Os italianos eram maioria e de
longe os mais barulhentos; falavam
dialetos tão distintos que não conseguiam entender uns aos outros.
Aqueles oriundos do norte da Itália,
geralmente operários especializados, tratavam com uma ponta de
desprezo seus conterrâneos do sul:
calabreses, napolitanos e sicilianos.
Para juntar os filhos na hora do almoço, as mães precisavam sair no
portão, gritar, xingá-los de miseráveis e ameaçar esganá-los; no jantar,
jamais. No fim do dia, mal o pai virava a esquina com a marmita, os meninos largavam a bola e corriam para dentro.
Os homens vestiam roupa escura,
mantinham o cenho carregado e um
olhar grave que só desanuviava
quando se reuniam para beber vinho no armazém da esquina, com os
copos dispostos no tampo das barricas de azeitona, ao lado de pilhas de
bacalhau salgado e sacos de mantimentos, ou quando recebiam os familiares nos almoços dos domingos,
em comemorações musicais que
nem sempre acabavam bem.
Naquele tempo, a palavra empenhada valia mais do que papel passado. Fui criado ouvindo que selar
contrato com um fio de barba era a
melhor forma de garantir seu cumprimento e que não havia condição
humana mais desprezível do que a
do homem sem palavra.
Quando cresci, dei-me conta de
que, na cidade que se modernizava, a
palavra havia perdido o valor em
meio a um emaranhado de leis confusas e de ações judiciais intermináveis. Só vinha ao caso o que estivesse
registrado em cartório.
Contraditoriamente, assisti à recuperação do valor ético da palavra
justamente entre aqueles que a sociedade considera sua escória mais
indigna: os ladrões, os traficantes e
os assassinos presos nas cadeias. Na
vida fora-da-lei, o respeito que um
homem impõe entre seus companheiros é diretamente proporcional
à assiduidade com que cumpre promessas feitas e respeita compromissos assumidos.
Enganam-se os que imaginam o
mundo dos marginais desprovido de
regras de convívio, palco de atos criminosos dirigidos indistintamente
contra a sociedade e contra os próprios pares. Existe um código penal
que rege o crime, não escrito, mas rígido, implacável, baseado no respeito à palavra proferida. Infringi-lo
implica em punição aplicada com
extremo rigor: agressão física, condenação ao ostracismo ou à morte,
segundo a gravidade da infração.
Embora não esteja em nenhum livro, tal código prevê todas as situações imagináveis. Ele não tem a
complexidade, nem os pontos controversos, nem a ineficácia do nosso.
Pelo contrário, separa com precisão
o certo do errado: entregar uma cesta básica todos os meses para a esposa do companheiro preso ou assumir sozinho a culpa dos parceiros
são procedimentos corretos. Assediá-la ou delatá-los está errado. Não
há atenuantes; crimes não prescrevem. É preto no branco. As penas de
morte são executadas prontamente.
Essas leis transmitidas oralmente
surgem porque somos primatas sociais. Não há caos que consiga persistir por muito tempo nos agrupamentos humanos. As leis do crime
exaltam os que cumprem a palavra e
execram os que mentem, delatam e
não pagam dívidas, porque os bandidos não podem usar o sistema legal
vigente na sociedade que agridem:
-Se o parceiro fica com minha
parte no roubo, posso mover uma
ação de perdas e danos contra ele?
Se lembrarmos que o mundo do
crime tem outra face, que não alberga apenas ladrões de rua ou traficantes de favela, mas governantes que
roubam dinheiro público, empresários que os corrompem para assinar
contratos escandalosos, sonegadores contumazes de impostos e agentes do mercado financeiro que investem os recursos obtidos ilegalmente, entendemos porque políticos e seus corruptores são obedientes às mesmas leis da marginalidade
pé-de-chinelo que superlota nossas
cadeias.
Por isso, jamais explicam a origem
da propina recebida e morrem tesos,
mas não entregam os comparsas envolvidos. Quando, excepcionalmente, algum deles o faz, corre risco de
morte ou de cassação dos direitos
políticos.
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