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NELSON ASCHER
"Plus ça change...'
Se avanços da segunda metade do século 20 superam os reveses, deve-se à internet
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"EU VI COISAS nas quais vocês, humanos, não acreditariam", diz o andróide
Roy a Deckard no final de "Blade
Runner". Bom, eu também vi algumas não menos incríveis como, por
exemplo, olhando da janela de um
Gordini novinho em folha, a colisão
de um Aero Willys com um Simca
Chambord na esquina da av. Ipiranga com a av. São João. A radiopatrulha que atendeu a ocorrência era um
Fusca e, entre os veículos que transitavam nas cercanias, creio que não
faltavam Vemaguets, Karmann
Ghias, Romizettas e Lambretas.
Como o "centrão" inteiro me era
familiar, desde o largo do Paissandu
(onde, talvez na minha recordação
mais antiga da cidade, eu pedira à
minha avó que me comprasse o bonequinho com uma vassoura nas
mãos que um camelô vendia) até a
praça da República (na qual eu corria atrás dos marrecos), não estranhei que, com o bonde parado por
causa do acidente, seus passageiros
aproveitassem para, descendo e enfrentando a fila habitual, tomar o expresso tirado de uma das poucas
máquinas Gaggia importadas da Itália que havia em São Paulo.
"O passado", escreve L. P. Hartley
no início de "O Mensageiro" (The
Go-Between), "é outro país" e, cinqüenta anos atrás, a região de dois
ou três km2 na qual nasci e vivo era
um outro planeta. A televisão familiar não o alcançou antes de eu completar seis anos, mas foi nela que assisti, em branco e preto, tanto à vitória na Guerra dos Seis Dias, como à
Guerra da Biafra.
Ter habitado a segunda metade do
século 20 implica constatar que,
malgrado alterações maiores do que
as que costumavam ocorrer em
meio milênio, tampouco é possível
negar que "plus ça change, plus c'est
la même chose" (quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam
iguais).
Quanto às mudanças, elas ultrapassam o enumerável. Vejamos: a
vitrola mono se transformou em toca-discos estéreo, em gravador de
rolo, de fita cassete, em toca-CD e
em MP3 player. Nem por isso Bach,
Beethoven ou Puccini saíram de
moda e inclusive Elvis Presley e os
Beatles se revelaram menos transitórios do que se pensava.
A evolução tecnológica, no entanto, permitiu que a música ouvida na
sala de estar passasse ao quarto dos
adolescentes e, depois, adquirida
on-line, se tornasse quase autisticamente individual e portátil. Paralelamente, os filmes que a TV transferira do cinema para casa ganharam
flexibilidade espaço-temporal com
o videocassete, qualidade com o
DVD e praticidade com o computador pessoal. Já seus temas e o tratamento destes variaram menos do
que o esperado após terem sido originalmente formulados e registrados há 2.500 anos, em grego.
Embora os novos meios de transporte prometessem, por seu turno,
encurtar as distâncias, o que eles
comprimiram foi o tempo, e é justo
que paulistanos forçados a cruzar a
cidade ponham em dúvida a eficiência do automóvel cujo uso na hora
do rush nem o sistema de som e o ar-condicionado tornam menos exasperador. Que voar seja agora para
muitos não luxo, mas necessidade é
uma contingência que submeteu as
viagens aéreas a incômodos idênticos. Seria fácil multiplicar esses
exemplos paradoxais que, como
sempre, confirmam a única lei indiscutível da história, aquela que Marx
não descobriu: a das conseqüências
imprevistas.
Não houve progresso? Houve. A
expectativa de vida aumentou em
toda parte. Vive-se mais e mais saudavelmente. Graças à economia de
mercado, mais gente (em números
absolutos e relativos) come mais,
melhor e tem acesso a uma variedade maior. Onde há fome (na África
Central, Cuba, Coréia do Norte), isso se deve aos desvarios políticos e
ideológicos locais.
A tais melhoras, porém, contrapõem-se estagnações e regressões
igualmente significativas. Deste modo, quando o genocídio moderno
que, inaugurado pelos turcos ao
massacrar os armênios, atingira a
condição de obra-prima com o Holocausto repetiu-se no Camboja do
Khmer Vermelho e em Ruanda, o silêncio ensurdecedor foi o da indiferença generalizada. Entre outros reveses estão o anti-semitismo que,
antes europeu, virou global e a "desdemocratização" provocada, na
América Latina, pelo neopopulismo
e, no Velho Continente, pelo Estado
assistencialista.
A escolha de algo capaz de desequilibrar o empate técnico acima
depende sobretudo do gosto pessoal. Para mim, se o saldo melhorou
marginalmente desde que estou por
aqui, ou seja, se há um mínimo lucro
líquido, este decorre do surgimento
da internet, que, além de me permitir comprar livros novos ou usados
do mundo inteiro sem me erguer de
minha cadeira, deu-me acesso à biblioteca sobre a qual Jorge Luis Borges falava: a de Babel.
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