São Paulo, quarta-feira, 31 de março de 2010

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MARCELO COELHO

Carta a um pedófilo


Em um momento de escândalos com a Igreja, me volto para você, que é leigo, solitário, amador


CARO X ..., Num momento em que aparecem tantos escândalos envolvendo a Igreja Católica, meus pensamentos se voltam para você, que é leigo, solitário, amador. Você faz parte da vasta maioria de pedófilos que (como lembrou João Pereira Coutinho neste espaço) afinal não fazem parte do clero.
Sua vida deve ser bem difícil. A sociedade não confia em sua vocação para cuidar de escolas, reformatórios, creches e outras obras assistenciais. Você não tem, por assim dizer, um rebanho cativo ao qual dedicar suas atenções.
Claro, você pode ser professor de canto coral, animador de festas infantis, diretor de colégio público, voluntário de ONGs dedicadas ao menor carente. Mas quantas vezes você terá de mudar de cidade, recomeçar sua carreira profissional e forjar cartas de recomendação ao longo da vida? Em caso de rumores, de flagrantes, de denúncias, a quem você pode recorrer? A bons advogados? Eles cobram muito.
E se você tiver de chegar a algum acordo com a família das vítimas? Quem pagará a indenização devida? Não, meu caro pedófilo amador, você estará sozinho nesta hora. Não conta com a proteção de nenhum bispo, nenhum papa.
Não contará com uma rede de amigos capazes de dizer que está em curso uma campanha difamatória. Não pode reclamar do anticlericalismo da imprensa. Não haverá quem lhe arranje um breve tratamento ou uma longa sinecura se você se declarar arrependido do que fez. Aliás, se não for muita indiscrição de minha parte, o que foi que você fez, exatamente?
Não, você não conta com a minha simpatia. Mas o termo "pedofilia" vai adquirindo, no uso cotidiano, significados imprecisos. Não acho pedófila a professora americana de trinta e poucos anos que se apaixonou (e foi correspondida) por um aluno de 15.
Ao mesmo tempo, muito abuso não é considerado pedofilia. Assisti recentemente (e está no YouTube) um programa em que Silvio Santos apavorava uma menininha, das mais "fofas", que participa de suas quermesses semanais. Via-se o terror da criança, ouviam-se as gargalhadas de Silvio Santos; foi uma cena de tortura psicológica que talvez você mesmo condenasse.
Não havia nada de sexo ali. Como também não há sexo no trecho que eu cito a seguir, que conta o que acontecia quando as crianças de um internato católico irlandês faziam xixi na cama.
"A irmã X... obrigava você a ficar de pé a noite toda com o lençol molhado na cabeça. Se você caísse no sono, ela vinha com a vara e batia; ficava doendo tanto que aí você não conseguia mais dormir."
Diante disso, uma menina rezou para nunca mais fazer xixi na cama. Sonhou então que Jesus saía da cruz, dizendo-lhe que isso não ia mais acontecer. Contou o sonho para uma freira, e levou um tapa na cara. Resolveu então confessar-se com o padre. Contou-lhe o sonho novamente. Ele mandou que ela se ajoelhasse e surrou-a com um cinto.
Outra freira não gostava das meninas que se recusassem a comer o que era servido na instituição. Em caso de náusea, as crianças eram obrigadas a comer o próprio vômito.
Caro pedófilo, imagino que mesmo você fique chocado com relatos desse tipo, que se acumularam na investigação (feita pelo governo, não pelo Vaticano) a respeito dos abusos cometidos pelo clero católico na Irlanda. São histórias antigas, é verdade: os testemunhos são de adultos relembrando o que passaram.
O papa Bento 16 pediu solenemente desculpas pelo que ocorreu. Dirigindo-se às vítimas dos abusos, escreveu: "Muitos de vós experimentastes que, quando éreis suficientemente corajosos para falar de quanto tinha acontecido, ninguém vos ouvia". Estará a Igreja disposta a querer que sejam ouvidos de agora em diante?
"É necessário ressaltar", suspira dom Giuseppe Versaldi, bispo de Alessandria (Itália) no "Osservatore Romano", que existe "um ataque contra a Igreja Católica, como se fosse a instituição onde se cometem tais abusos com mais frequência".
Caro pedófilo leigo, você não pertence a nenhuma instituição. Você comete seus crimes por sua própria conta e risco. Não serão abafados; seu arrependimento não convencerá ninguém, não haverá pedido de desculpas públicas nem discussões a respeito das fraquezas que seu celibato teria estimulado. Que Deus o ajude, são os votos deste que assina,

coelhofsp@uol.com.br


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