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RODAPÉ
Ficção científica é a Atlântida da literatura brasileira
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Para a maioria dos leitores, a
ficção científica sempre foi
um gênero menor, servindo apenas como ponto de partida para
filmes repletos de efeitos especiais, figurinos exóticos, seres extraterrestres e universos imaginários. Para esses leitores, "Ficção
Científica, Fantasia e Horror no
Brasil (1875 a 1950)", de Roberto
de Sousa Causo, corresponde à
descoberta de uma ilha perdida,
uma espécie de Atlântida literária.
O livro discute a definição do
gênero, fazendo uma genealogia
que remonta à Antiguidade, e
apresenta uma gama de autores
nacionais que raramente aparecem nos compêndios de literatura
brasileira, lançando mão de uma
bibliografia sobre ficção científica
(FC) e de idéias fundamentais nos
estudos literários (a noção de "sublime" de Kant ou a "teoria dos
modos" de Northrop Frye). Com
isso, procura refutar a idéia de que
a FC seja um gênero "fechado",
circunscrito a um arranjo de temas e motivos apartados das
preocupações estéticas e éticas
dominantes.
Para Causo, a expressão mais
correta para essa linhagem é "ficção especulativa", uma tradição
que se indaga sobre os limites do
real e "bebe de fontes míticas, satíricas, utópicas, romanescas e
mesmo científicas, para se realizar
como um corpo multifacetado de
possibilidades ficcionais, existindo em interação com o "mainstream" literário, mas não em uma
chave de inferioridade artística".
Obviamente, juízos de superioridade ou inferioridade artística
não podem ser feitos no atacado:
é no varejo, na leitura individual
de cada autor, que se pode determinar o lugar que escritores contemporâneos como Bruce Sterling, Philip K. Dick e Stephen
King ocupam diante de clássicos
como Lovecraft, Júlio Verne, Tolkien e H.G. Wells. Por trás dessa
reivindicação da qualidade intrínseca à FC, há uma preocupação
em conectá-la a fontes universais
da invenção literária, obras canônicas que teriam o papel secundário de "protoficções", preparando
seu terreno.
Causo faz três recortes. A ficção
científica propriamente dita teria
raízes em viagens fantásticas
-como as dos relatos de Luciano
de Samósata ("Vera História"),
Jonathan Swift ("Viagens de Gulliver"), Kepler ("Somnium") ou
Cyrano de Bergerac ("Viagem à
Lua")- e lugares imaginários como o reino lendário do Preste
João, "A Utopia" de Thomas More ou o mundo profetizado por
Vieira em "História do Futuro".
Já os gêneros irmãos da FC seriam a "fantasia", no qual a ciência dá lugar a fenômenos de ordem mágica (como no ciclo do rei
Artur), e o "horror", cuja atmosfera onírica de claustrofobia remonta ao romance gótico e às
"Noites na Taverna", de Álvares
de Azevedo.
Essa pluralidade de fontes, por
sua vez, ganha um matiz especial
em sua ambiência brasileira. E, se
isso é válido para toda a nossa literatura, sendo possível encontrar
traços do folclore medieval tanto
na literatura popular nordestina
quanto em Guimarães Rosa, um
importante autor de FC como
Braulio Tavares renova esse amálgama, escrevendo o cordel fantástico intitulado "A Pedra do Meio-Dia ou Artur e Isadora".
Outra especificidade é o modo
como a FC brasileira lida com as
virtualidades oferecidas pela ciência. Longe de embarcarem numa
cópia de modelos europeus ou
norte-americanos, os brasileiros
expressam o caráter passivo, contemplativo, que a ciência assume
num país tecnologicamente defasado, como ocorre em "Doutor
Benignus" (1875), de Augusto
Emílio Zaluar, marco inaugural
do romance científico no país.
"Ficção Científica, Fantasia e
Horror no Brasil" cobre um período que compreende os pioneiros da FC, com análises cuidadosas de autores como Gastão Cruls,
Afonso Schmidt, Adalzira Bittencourt e Berilo Neves e das incursões "fantásticas" de escritores
como Monteiro Lobato e Menotti
del Picchia. Mas não faltam referências a contemporâneos como
Tabajara Ruas, Marcia Kupstas e
Daniel Fresnot. Nomes aos quais
poderíamos acrescentar o próprio Causo, um talentoso autor de
ficção especulativa.
Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil
Autor: Roberto de Sousa Causo
Editora: UFMG
Quanto: R$ 38 (340 págs.)
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