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São Paulo, sábado, 31 de maio de 2003

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ARTES CÊNICAS

"A PRAÇA DO DIAMANTE"

Romance tem narrativa pontuada pela oralidade

Guerra Civil Espanhola introduz ritmo de Rodoreda

FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Existem acontecimentos que são como feridas abertas no flanco dos países. Num esforço de "cicatrização", a arte as revisita.
Para os espanhóis do século 20, é o caso da tentativa republicana e a consequente Guerra Civil (1936-1939). É este o tema que permeia "A Praça do Diamante", romance com o qual Mercè Rodoreda (1908-1983) chega ao Brasil.
Mais do que espanhola, Rodoreda é catalã. Apesar de composta no exílio (ocasionado justamente pela defesa da república em seu país), sua obra nasce em Barcelona, mais especificamente, nos quarteirões do bairro de Sant Gervasi, onde ela própria cresceu.
"A Julieta veio até a confeitaria expressamente para me dizer que, antes do sorteio da prenda, iam sortear cafeteiras; que ela já as tinha visto: lindas, brancas, com uma laranja pintada, partida ao meio, os caroços à mostra", diz Natália, protagonista e narradora, abrindo o romance e convidando à agitação gerada por uma festa popular na praça do título.
Do balcão de doces ao baile, é um pulo -e daí para que Natália ganhe o definitivo apelido de Colometa ("pombinha" em catalão) e se faça mulher de Quimet, é outro. O encontro é frontal: Rodoreda joga o leitor no mesmo torvelinho em que Natália é lançada.
Sem tempo de retomar o fôlego, seguimos -do sorteio das cafeteiras aos beijos no parque Güell; dali ao apartamento que Colometa e Quimet reformam; do casamento aos filhos- conduzidos por uma narrativa pontuada pela oralidade, em que a inocência da protagonista borbota.
Parece quase que Natália se deixa levar pelo vento como a pombinha que seu marido nela vê e chega a ser exasperante sua aceitação de tudo o que se lhe apresenta, até mesmo a transformação da casa em casa de pombos de verdade, a paixão de Quimet.
Rodoreda se mostra hábil no manejo do ritmo e, quando já nos esquecíamos de que este é um livro sobre a Guerra Civil Espanhola, eis que ela surge, e o mundo de Colometa rui. É aí que o talento da autora se faz ainda mais evidente.
A moça ingênua se amargura; tudo o que o cotidiano duro não lhe havia tirado vai desaparecendo, apesar de seus esforços. A revolta de Colometa se anuncia -diante da fome, da falta de tudo, da humilhação e das dores da guerra- em tintas de tragédia. Até que sobrevém uma outra mudança e um desfecho em tom sutilmente rebaixado, os sobressaltos de Natália se espelhando na mudança da linguagem.
Não é fácil chegar ao resultado obtido por Rodoreda quando se tem um só foco narrativo. Muitas vozes, se requerem harmonia, ajudam a criar o ambiente. Já o ponto de vista único, este é muito mais escasso em possibilidades de prender o leitor -se ele não se identifica, adeus.
Não foi sem percalços que se deu a recepção ao livro e à sua protagonista. Mas o texto, rejeitado pelo Prêmio Sant Jordi, teve força para tocar membros do júri, que o levaram àquele que seria o editor de Rodoreda, Joan Sales.
A fidelidade da autora à língua catalã talvez tenha inibido sua difusão no vasto mundo das letras hispânicas. Não é sem motivo, portanto, que o texto publicado como prólogo, assinado por Gabriel García Márquez, leve por título uma pergunta: "Você sabe quem foi Mercè Rodoreda?". Um livro como "A Praça do Diamante" faz com que se queira responder, orgulhosamente, que sim.


A Praça do Diamante
     Autora: Mercè Rodoreda Tradução: Luis Reyes Gil Editora: Planeta (tel.: 0/xx/11/ 5543-7899) Quanto: R$ 39 (240 págs.)



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