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HQ de formação
Na premiada "Retalhos", o americano Craig Thompson reconta o primeiro amor
e as brincadeiras com o irmão e exorciza traumas que marcaram sua juventude
LEONARDO CRUZ
EDITOR-ASSISTENTE DA ILUSTRADA
A infância e a adolescência de
Craig Thompson não foram das
mais fáceis. Humilhado por colegas de escola, vítima de abuso
sexual, educado sob um cristianismo rigoroso, este garoto
criado numa comunidade rural
do provinciano Estado de Wisconsin foi um típico "loser"
americano, atormentado pelas
memórias até tornar-se adulto.
Sorte nossa. Os fantasmas da
primeira idade serviram de inspiração para "Retalhos", bela
história em quadrinhos autobiográfica, 592 páginas que dialogam com os romances de formação da literatura clássica.
Lançado no exterior em
2003, quando o autor tinha 27
anos, "Retratos" chega agora ao
Brasil após merecidamente receber algumas das principais
honrarias do mundo da HQ, como o Eisner e o Harvey Awards
nos EUA (2004) e o prêmio da
crítica francesa no tradicional
Festival de Angoulême (2005).
O traço detalhista de Thompson não desenha apenas agruras. As brincadeiras e brigas
com o irmão caçula e, principalmente, a relação com Raina,
a primeira namorada, guiam o
fio narrativo de "Retalhos".
À Folha o autor conta que
"tinha uma motivação simples"
quando começou a escrever a
obra, no segundo semestre de
1999. "Estava frustrado com o
predomínio das histórias de
fantasia bombásticas no meio
da HQ. Queria fazer um livro
longo que deixasse de lado as
sequências de ação para capturar uma experiência íntima e
silenciosa, como a de dividir a
cama com alguém pela primeira vez. Os temas autobiográfico
e religioso se encaixaram."
Thompson afirma que, quando fez "Retalhos", estava "especialmente inspirado" pelos escritos de Marcel Proust e Vladimir Nabokov e que absorvia
as obras de quadrinistas franceses como David B., autor de
"Epilético" (1996), história
também autobiográfica.
A fé ocupa espaço central nas
memórias de Thompson, e
"Retratos" é pontuado pelo
crescente questionamento dos
preceitos da Igreja Batista que
o autor frequentava na infância. Ao informar à família que
exporia o passado de todos em
uma "graphic novel", Thompson recebeu o apoio do irmão,
mas não dos pais. "Eles reagiram muito mal, me repreenderam, dizendo que o livro era
um "instrumento do demônio"
e que eu iria para o Inferno."
O quadrinista diz que seus
pais hoje respeitam sua descrença e que o sucesso da obra
do capeta virou motivo de orgulho para eles. "Muitos dos fãs
do livro são cristãos devotos,
até pastores, que veem em "Retalhos" um retrato honesto da
espiritualidade de alguém."
Paixão abaixo de zero
Outro elemento importante
da obra é o frio -Wisconsin
tem invernos rigorosos, e grande parte da HQ se desenrola
sob neve. "Talvez as temperaturas extremas tenham ajudado a congelar aqueles momentos, como memórias ancoradas
por fortes sensações físicas",
comenta Thompson. "Minha
relação com Raina, como muitas experiências de infância, foi
curta e efêmera -ligada a uma
única estação de um único ano,
e é impossível tirar toda aquela
neve de minhas fotografias internas", conclui, poeticamente.
Após "Retalhos", Thompson
lançou em 2004 "Carnet de Voyage", com registros de sete
meses de andanças pela Europa
e pelo norte da África. O próximo livro será "Habibi", obra sobre o mundo árabe, catatau em
que ele trabalha há cinco anos.
"Tenho mantido uma rotina
de desenhar de oito a dez horas
por dia. Cerca de 500 páginas
estão prontas, mas a história
toda tem 700. Deve estar finalizada no meio do próximo ano, e
impressa no fim de 2010 ou início de 2011." Thompson mantém um bom diário na internet,
onde é possível acompanhar a
evolução de seus desenhos:
blog.dootdootgarden.com.
RETALHOS
Autor: Craig Thompson
Tradução: Érico Assis
Editora: Quadrinhos na Cia.
Quanto: R$ 49 (592 págs.)
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