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CONTARDO CALLIGARIS
Um prédio ocupado, em Curitiba
Passei o fim de semana em
Curitiba, acompanhando
um filho que vai passar um ano
fazendo intercâmbio na cidade.
Aproveitei para visitar, domingo à noite, na rua Marechal Deodoro, um prédio que pertencia ao
Banestado, o ex-banco do Estado
do Paraná, que faliu e cuja massa
foi adquirida pelo banco Itaú. O
edifício, vazio há tempos, foi invadido e ocupado, quase dois meses atrás, pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia. Mudaram-se para lá, de mala e cuia, 40
famílias.
Enquanto o perfume de uma
boa sopa caseira enchia o ar e
crianças brincavam por todos os
lados, conversei com Anselmo
Schwertner, 39, membro da coordenação estadual e nacional do
movimento.
Entendi o seguinte: o MNLM é
mais que um projeto de assentamentos urbanos. Não se trata
apenas de forçar a barra para que
os sem-teto do país encontrem,
nas cidades, condições aceitáveis
de moradia. A idéia é produzir
uma "reforma urbana".
Pois bem, o que seria uma reforma que nos tornasse mais urbanos?
Imagine que, pelos diferentes
bairros (incluindo os mais privilegiados), prédios abandonados sejam transformados em moradias
dignas para cidadãos com condições precárias de habitação: não
só favelados ou moradores de rua
mas também pessoas forçadas a
viver a distâncias atrozes de seu
lugar de trabalho, jovens famílias
que não conseguem constituir um
lar independente do de seus pais
etc. Essa transformação urbana,
por si só, teria um mérito. Qual?
As diferenças sociais, nas cidades brasileiras, se organizam, geralmente, numa segregação habitacional. A "senzala" pode ser
identificada com grandes áreas
da periferia (modelo paulista) ou
com favelas que se insinuam nas
áreas ditas nobres (modelo carioca). De qualquer forma, o lugar
ou a qualidade da moradia funcionam como atributos de castas
separadas. Diga-me onde e como
você mora e saberei não como você está, mas se você é dos meus ou
não.
Uma convivência efetiva pediria que houvesse um denominador comum de conforto. Nesse caso, as experiências cotidianas de
cruzar-se, de dizer-se bom-dia, de
comprar pão na mesma padaria
e, idealmente, de levar os filhos
para uma mesma escola pública
(se fosse, como deveria, a melhor
aos olhos de todos) alimentariam
o sentimento de que as diferenças
econômicas não são destinos, mas
contingências sob as quais nossas
vidas se assemelham.
Claro, se, para ser realizado, o
projeto de uma convivência citadina contasse só com traslados e
mudanças, ele seria singularmente ineficiente. Os cariocas observariam que essa redistribuição
topográfica resultaria logo na
mudança maciça do crime organizado do morro para o asfalto
(como se os dois já não estivessem
suficientemente próximos). E os
paulistas diriam que é só o que
faltava, semear por Higienópolis
e pelos Jardins uma série de prédios que produziriam microclimas assustadores -para quê?
Entendo as objeções dos hipotéticos paulistas e cariocas. Aliás, o
próprio MNLM também parece
entender: seu projeto não consiste
apenas em ocupar e distribuir pelas cidades residências para os
mais necessitados. A idéia é que
os assentamentos sejam, para as
famílias, a ocasião de uma saída
da marginalidade social e econômica. Como?
Imagine que os prédios multifamiliares consigam funcionar como cooperativas de produção de
bens ou serviços que correspondam a uma necessidade do mercado. Claro, não é fácil: trabalhadores pouco qualificados deveriam ser formados, seriam necessários quadros de gestão cooperativa etc. Mas os atrativos do projeto são indiscutíveis: uma massa
consistente de desfavorecidos viria integrar-se, ao mesmo tempo,
no tecido urbano e nas fileiras das
pequenas classes médias.
Existem pesquisas demonstrando que, quando, num bairro pobre, a percentagem de habitantes
de classe média desce abaixo de
5% ou 6%, aumentam vertiginosamente os índices de marginalidade (gravidezes indesejadas de
menores, desistências escolares,
delitos etc.). Por falta de convivência com faixas mais privilegiadas, o grupo carente se percebe
como uma tribo à parte e, portanto, sem compromisso com os valores da sociedade como um todo.
Não deveria ser impossível mostrar a recíproca. Quando, num
bairro rico, a percentagem de habitantes pobres desce abaixo de
um limite definido, aumentam
vertiginosamente os índices da estupidez social (falta de solidariedade, decadência dos ideais comunitários, culto do privilégio exclusivo etc.).
Em suma, a convivência urbana das diferenças sociais é crucial
para manter um sentimento básico de valores e destinos compartilhados. Mas essa convivência não
é a simples proximidade física de
morro e asfalto: ela pressupõe, por
assim dizer, uma moradia comum.
Resta sonhar com duas coisas
improváveis: que a separação social não tenha tornado os privilegiados irremediavelmente incapazes de solidariedade e que o
movimento de luta pela moradia
não adote uma ideologia rançosa
de Guerra Fria (no estilo atual de
João Pedro Stédile), confirmando
assim uma fratura social que deveríamos resolver na reinvenção
de uma comunidade.
ccalligari@uol.com.br
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