São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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"Farinha do Mesmo Saco" (ou "Novela do Mensalão")

PARÓDIA DE RICARDO LINHARES

Época: atual
Local: uma pequena cidade perdida no interior do Brasil
Personagens:

Prefeito

Publicitário

Assessor do prefeito

Mulher do publicitário


CENA 1.
GABINETE DO PREFEITO. INTERIOR. DIA.
O prefeito, com enfado, repassa a agenda com seu assessor.

Prefeito - Você acha mesmo que eu devo ir à inauguração de um mictório público?...

Assessor - Eu sei que é uma cerimônia cacete, sem trocadilhos... mas o senhor tem que ir. Afinal, é uma obra pública, e o senhor precisa mostrar as grandes realizações do seu governo!...
O publicitário entra, interrompendo-os acintosamente, com uma microcâmera na mão.

Publicitário - Você aí, se manda que eu vim falar com o prefeito. Sozinho!
Vai, se escafede, rua!...

Prefeito - Bebeu? Isso é jeito de entrar no meu gabinete?

Assessor - (sai apressado) Eu vou chamar a segurança!
Assim que ele sai, o publicitário tranca a porta. Depois, liga a microcâmera na parte frontal de uma TV que há ali. Ele bota a fita na microcâmera.

Prefeito - Mas o que é que significa esse furdunço?
O publicitário liga a TV e aciona a câmera para rodar a fita.

Publicitário - Abra bem os olhos. Isso é nitroglicerina pura!
Na TV, aparece a imagem do prefeito sendo informado do esquema do "mensalão".

Publicitário - Já pensou se essa imagem aparece em rede nacional? Seria um desastre pra sua reputação!...

Prefeito - Pode parar, cabra safado, que eu já entendi: o senhor veio me chantagear, seu verme!... O que o senhor quer em troca dessa fita? Fala, sem vergonha!

Publicitário - Simples: eu quero R$ 200 milhões! O senhor decide: ou paga... ou então será o escândalo total!

Prefeito - Espera aí, nós ainda podemos tentar negociar...

Publicitário - Deixe de nhenhenhém!... Não tente ganhar tempo me enrolando porque eu não sou barbante!

Prefeito - É um pesadelo... O senhor não é um homem, é um rato, um traidor! Calabar! Judas Iscariotes! ...

Publicitário - (boceja) Quando cansar de me xingar, avisa.

Prefeito - Mas não pode ser assim, à queima-roupa! Eu preciso de um tempo pra pensar!

Publicitário - Eu dou um tempo, mas é pra o senhor dizer sim! Hoje, às 17 h, quero a bufunfa na minha mão!
CORTA PARA CENA 2.
GABINETE DO PREFEITO. INTERIOR. DIA. ALGUM TEMPO DEPOIS.
O assessor já reagindo revoltado diante do prefeito.

Assessor - Golpe baixo, o mais sórdido de todos os golpes!... Aquilo é uma naja, uma serpente, uma víbora! O que mais me dói é a ousadia de afrontar o senhor! Fazer uma chantagem dessas logo com o pai do povo?

Prefeito - Desta vez estou mesmo encalacrado...

Assessor - Reaja, prefeito! Não faça essa cara de velório...

Prefeito - Pois é assim que eu me sinto: como se estivesse a um passo do meu próprio enterro...

Assessor - Mas o senhor não é homem de ceder à chantagem! (pausa) Ou é?...

Prefeito - Não, mas não sei o que fazer. Estou à beira do abismo... Agora é que são elas!...

Assessor - (se toca) O senhor viu bem a fita? Tem certeza de que não era uma montagem? Uma falsificação?

Prefeito - (dá esbregue) E você acha que eu não ia reconhecer a mim mesmo?
Claro que não era montagem! (tem idéia) Espere aí... uma montagem? Uma falsificação?... (sorri) Já sei o que fazer!
CORTA PARA CENA 3.
GABINETE DO PREFEITO. INTERIOR. DIA. HORAS MAIS TARDE.
O prefeito recebendo o publicitário.

Prefeito - Se me permite a pergunta... trouxe a tal fita incriminadora, com aquelas minhas imagens?
O publicitário saca a fita de vídeo do bolso e mostra.

Publicitário - (voz debochada) Eu tenho, você não tem...

Prefeito - Tenho, sim... uma coisinha especial pro senhor.
Ele tira do bolso uma fita cassete de áudio, e muda de postura, atacando.

Prefeito - Nesta fita tem uma gravação que eu fiz do senhor, que pode fazer a sua reputação dar um tombo maior que o meu tombo. Esta é a minha resposta à sua chantagem: elas por elas! Uma fita pela outra! E tem que ser agora! É pegar ou largar!
O publicitário quase leva um tombo, surpreso com a novidade.

Publicitário - (tenta jogar) O senhor está blefando comigo!

Prefeito - O senhor vai ter que esperar pelo dia de São Nunca pra me dar uma rasteira! Aqui tem todas as suas maracutaias, tudo que o senhor roubou...
gravado com a sua própria voz!

Publicitário - Nunca falei nada disso, nem pra mim mesmo!

Prefeito - Falou sim, naquele dia que tomou uns gorós lá na granja e ficou se vangloriando. Falou das propinas, comissões, empréstimos, tráfico de influência, e até da lavagem de dinheiro nos bancos da Suíça, inclusive citando o nome do seu doleiro... lembra?

Publicitário - (se apavora, lembrando de tudo) O senhor não fez isso! Gravou minha voz à traição?

Prefeito - Gravei! Porque podia ser útil... como é agora! Eu divulgo as suas maracutaias e lhe desmoralizo! A menos que o senhor tope fazer um troca-troca!...

Publicitário - Epa! Que papo é esse de troca-troca?...

Prefeito - No bom sentido! Trocando uma fita pela outra... O senhor é um babaqüara, um mané, um otário! Se meteu de pato a ganso e se deu muito mal!

Publicitário - (se desespera) Não! Eu não vou agüentar essa derrota! Armei tudo direito, joguei todas as minhas fichas pra quebrar a banca... seria o clímax da minha carreira de golpista! Como vou abrir mão disso tudo agora?
Com que cara eu vou chegar lá em casa?...

Prefeito - (debochado) Troca-troca?

Publicitário - (suspira, concorda) Troca-troca.
Eles trocam as fitas, rapidamente.
CORTA PARA CENA 4.
RUA. CARRO DO PUBLICITÁRIO. EXTERIOR. DIA.
Dentro do carro, a mulher do publicitário espera, em palpos de aranha. O publicitário entra, fecha a porta e coloca a fita cassete no som do carro.

Publicitário - Ele disse que tinha uma arma poderosíssima contra mim! Eu tive que recuar e fazer um troca-troca! Senão eu tava fubecado!...

Mulher - (aflita) Mas o que tem nessa fita? Vamos ouvir!...

Publicitário - Minhas maracutaias, com minha própria voz!...
Enquanto falam, o publicitário aciona o aparelho de som.

Prefeito - (OFF, repetindo) "Otário... Otário... Otário..."

Mulher - Não tem nenhuma maracutaia gravada aí, nem a sua voz... só tem a voz do prefeito! E tá repetindo...

Prefeito - (OFF, repetindo)"Otário... Otário... Otário..."

Mulher - Você caiu num blefe, feito um... um otário, sim!
CORTA RÁPIDO PARA:
CENA 5.
GABINETE DO PREFEITO. INTERIOR. DIA.
O assessor com o prefeito, que coloca fogo na fita de vídeo, num cinzeiro:

Assessor - O senhor bolou um contragolpe de gênio!...

Prefeito- (rindo) Quando você falou em falsificação, pensei em montar uma fita pra incriminar o cabra, mas fiz melhor ainda: a fita não tinha nada!
Era só blefe! Ele se borrou todo, sabendo que tinha culpa no cartório, e perdeu a parada sem ter prova nenhuma contra ele! É um otário mesmo! E eu sou muito esperto...
CORTA PARA:
Fim da "Novela do Mensalão" (ou "Farinha do Mesmo Saco")


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