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Análise
Bergman filmava alma de personagens
Embora questões metafísicas e existenciais fossem constantes em sua obra, ele foi mais do que um "cineasta da angústia"
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
A morte que ontem chegou para Ingmar Bergman acompanhou-o
por toda a obra como uma de
suas obsessões recorrentes.
Tem presença até mesmo física
em "O Sétimo Selo" (1957), um
de seus filmes mais célebres,
onde um homem disputa com
ela uma partida de xadrez (não
é difícil imaginar o resultado).
A morte não era, no entanto,
figura isolada em suas preocupações. Era parte de um mundo
em que o homem é atirado por
Deus para viver a aventura de
ser único, uma solidão apenas
mitigada, nos bons momentos,
ao menos, por essa instituição
periclitante que é o amor.
Em obra iniciada no pós-guerra e ao longo da qual realizou cerca de 60 filmes, entre
produções para cinema e TV
(sem falar do teatro), Bergman
quase sempre indagou-se a respeito de Deus, deste Deus austero e silencioso que deixou os
homens à própria sorte, o Deus
cultuado pelo protestantismo
dos países nórdicos, e em particular por seu pai, um pastor.
Bergman foi, no cinema moderno, o grande continuador da
escola nórdica, de diretores como Carl Th. Dreyer, dinamarquês, ou Victor Sjostrom, sueco
como Bergman e que pode ser
visto como ator em "Morangos
Silvestres" (1957), grande momento da produção bergmaniana, em que um velho senhor,
no ocaso da vida, pergunta-se
sobre o que foi sua existência.
Se as questões, ora metafísicas, ora existenciais, pululam
no cinema de Bergman, não é
correto dizer que era um cinema exclusivamente da angústia. Assim como podia pensar
na morte de forma obsessiva,
era capaz de produzir um dos
mais belos e vitais filmes sobre
a juventude, como "Monika e o
Desejo" (1952), que o fez descobrir mundialmente no Festival
de Cannes e, então, ser reconhecido como um dos grandes
cineastas de seu tempo, ou enveredar pela política, como em
"O Ovo da Serpente" (1979).
Imagens únicas
Bergman foi menos original
na temática do que na abordagem de seus temas. Sabia como
ninguém filmar um primeiro
plano. Aproximava a câmera de
atores e atrizes e extraía imagens únicas, que não por acaso
promoveram ao estrelato uma
longa lista deles, de Harriet Anderson a Liv Ullman, passando
por Ingrid Thulin, Bibi Anderson, Gunnel Lindblom -para
ficar em algumas do lado feminino-, que contracenaram
com Max von Sydow ou Erland
Josephson, do masculino.
Talvez Bergman tenha sido
mesmo "o cineasta do instante", como definiu Godard em
1958: era o pensamento que
ocorria mesmo que longinquamente a um determinado rosto
que sua câmera levava ao espectador. Não penetrava na
psiquê dos personagens. Penetrava na alma, de certa forma,
mas sabia que só poderia fazê-lo por meio de seus corpos.
Qual o melhor Bergman? Haverá quem prefira o do início, o
de, por exemplo, "Noites de
Circo" (1953), que o fez descobrir no Brasil (sim, Walter Hugo Khouri era grande fã desse
filme notável), o dos anos 60, de
"Persona" (que no Brasil recebeu o nome infame de "Quando
Duas Mulheres Pecam"), ou
aquele já desiludido de Deus
que se insinua nos anos 70 em,
digamos, "Gritos e Sussurros".
Bergman por vezes cansava,
é verdade, já que seus filmes,
feitos um atrás do outro pareciam por vezes repetir-se. Bastava dar-lhe uns anos de folga,
no entanto, para que voltasse
original. Como em seu último
trabalho, "Saraband", nunca
exibido comercialmente entre
nós, o que é apenas uma vergonha a mais de nosso sistema
distribuidor. Bergman foi um
dos grandes do cinema moderno: ver seu trabalho, uma última vez, é um direito que devia
ser dado a todo espectador.
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