São Paulo, terça-feira, 31 de julho de 2007

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Análise

Bergman filmava alma de personagens

Embora questões metafísicas e existenciais fossem constantes em sua obra, ele foi mais do que um "cineasta da angústia"

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

A morte que ontem chegou para Ingmar Bergman acompanhou-o por toda a obra como uma de suas obsessões recorrentes. Tem presença até mesmo física em "O Sétimo Selo" (1957), um de seus filmes mais célebres, onde um homem disputa com ela uma partida de xadrez (não é difícil imaginar o resultado).
A morte não era, no entanto, figura isolada em suas preocupações. Era parte de um mundo em que o homem é atirado por Deus para viver a aventura de ser único, uma solidão apenas mitigada, nos bons momentos, ao menos, por essa instituição periclitante que é o amor.
Em obra iniciada no pós-guerra e ao longo da qual realizou cerca de 60 filmes, entre produções para cinema e TV (sem falar do teatro), Bergman quase sempre indagou-se a respeito de Deus, deste Deus austero e silencioso que deixou os homens à própria sorte, o Deus cultuado pelo protestantismo dos países nórdicos, e em particular por seu pai, um pastor.
Bergman foi, no cinema moderno, o grande continuador da escola nórdica, de diretores como Carl Th. Dreyer, dinamarquês, ou Victor Sjostrom, sueco como Bergman e que pode ser visto como ator em "Morangos Silvestres" (1957), grande momento da produção bergmaniana, em que um velho senhor, no ocaso da vida, pergunta-se sobre o que foi sua existência.
Se as questões, ora metafísicas, ora existenciais, pululam no cinema de Bergman, não é correto dizer que era um cinema exclusivamente da angústia. Assim como podia pensar na morte de forma obsessiva, era capaz de produzir um dos mais belos e vitais filmes sobre a juventude, como "Monika e o Desejo" (1952), que o fez descobrir mundialmente no Festival de Cannes e, então, ser reconhecido como um dos grandes cineastas de seu tempo, ou enveredar pela política, como em "O Ovo da Serpente" (1979).

Imagens únicas
Bergman foi menos original na temática do que na abordagem de seus temas. Sabia como ninguém filmar um primeiro plano. Aproximava a câmera de atores e atrizes e extraía imagens únicas, que não por acaso promoveram ao estrelato uma longa lista deles, de Harriet Anderson a Liv Ullman, passando por Ingrid Thulin, Bibi Anderson, Gunnel Lindblom -para ficar em algumas do lado feminino-, que contracenaram com Max von Sydow ou Erland Josephson, do masculino.
Talvez Bergman tenha sido mesmo "o cineasta do instante", como definiu Godard em 1958: era o pensamento que ocorria mesmo que longinquamente a um determinado rosto que sua câmera levava ao espectador. Não penetrava na psiquê dos personagens. Penetrava na alma, de certa forma, mas sabia que só poderia fazê-lo por meio de seus corpos.
Qual o melhor Bergman? Haverá quem prefira o do início, o de, por exemplo, "Noites de Circo" (1953), que o fez descobrir no Brasil (sim, Walter Hugo Khouri era grande fã desse filme notável), o dos anos 60, de "Persona" (que no Brasil recebeu o nome infame de "Quando Duas Mulheres Pecam"), ou aquele já desiludido de Deus que se insinua nos anos 70 em, digamos, "Gritos e Sussurros".
Bergman por vezes cansava, é verdade, já que seus filmes, feitos um atrás do outro pareciam por vezes repetir-se. Bastava dar-lhe uns anos de folga, no entanto, para que voltasse original. Como em seu último trabalho, "Saraband", nunca exibido comercialmente entre nós, o que é apenas uma vergonha a mais de nosso sistema distribuidor. Bergman foi um dos grandes do cinema moderno: ver seu trabalho, uma última vez, é um direito que devia ser dado a todo espectador.


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