São Paulo, sábado, 31 de agosto de 2002

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A grande mentira

Alexander Natruskin - 7.nov.2000/Reuters
Passeata em Moscou celebra os 83 anos da Revolução Russa



Em "Koba the Dread", o britânico Martin Amis revê crimes do stalinismo e critica complacência dos intelectuais ocidentais perante regime soviético


SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

Desde que terminou de escrever "Experience" (2000), Martin Amis, 53, escuta vozes. Naquele livro, o romancista britânico relatava suas memórias, tendo como foco central o relacionamento com o pai, o também escritor Kingsley Amis (1922-1995).
"Terminei o livro, mas continuei discutindo com meu pai dia e noite em minha cabeça. Eu sabia que não havia dado o espaço devido à política. E sabia que a política era um dos canais mais importantes entre nós dois", disse Amis, em entrevista à Folha, por telefone, de Londres.
Foi então que pôs-se a escrever "Koba the Dread", lançado nos EUA e na Europa, mas ainda sem previsão de sair no Brasil. "Koba" era o apelido do ditador soviético Joseph Stálin ("dread" significa medo).
Amis quis mostrar que o regime soviético -sob Stálin (1879-1953), mas também sob Lênin (1870-1924)- poderia ser resumido nas palavras: fome, terror (limpeza étnica, execuções), escravidão, fracasso.
O livro conjuga resultados de leituras sobre os crimes cometidos logo depois da Revolução Russa (1917) e durante o período de Stálin no governo (1924-1953) e especula as razões que teriam levado a experiência soviética a ser aceita com imensa complacência por intelectuais ocidentais. Indulgência que, em muitos casos, resistiria até recentemente.
Entre estes, justamente, encontrava-se Kingsley Amis. "Meu pai foi um comunista convicto que depois virou anticomunista. O que me fascinava em minha relação com ele era ver o tamanho de sua fé política, e perceber que eu não tinha nenhuma", disse.
Kingsley Amis foi membro do Partido Comunista britânico de 1941 a 1956. Nos anos 60, ao lado do amigo Robert Conquest, Kingsley mudou de opinião. Ambos passaram a escrever contra o regime soviético. Conquest se tornou um especialista nos crimes do período; é dele o clássico sobre o tema "The Great Terror" (1968).
Já a trajetória de Amis sempre foi marcada pelo ceticismo. No livro ele recorda as discussões com os colegas de Oxford ("eram todos bolcheviques"). Nos anos 70, quando começou a trabalhar na "The New Statesman", Amis conheceu os também escritores e defensores do socialismo Julian Barnes e Christopher Hitchens e o poeta James Fenton.
A convivência com os três, conta, o fez aprimorar seus argumentos anticomunistas. Quando estes diziam ser contra o "comunismo real" e defendiam uma volta aos valores revolucionários, condensados na figura de Trótski ("o grande espectro da possibilidade frustrada"), Amis perguntava como escritores e poetas como eles podiam aceitar um sistema em que os homens das letras serviam o Estado? E, o que lhe parecia pior, um sistema que empobrecia a literatura com o abuso de "clichés, eufemismos e fórmulas?".
Entre o momento em que começou a escrever o livro e sua conclusão, sua irmã Sally, de 46 anos, morreu. Amis decidiu opor a morte de seu pai e de sua irmã às de mais de 20 milhões de pessoas (segundo as estimativas apresentadas no livro) que morreram em consequência do terror soviético.
"Queria impedir que as mortes daquele período se transformassem em estatística." Mas isso não seria próprio do relato histórico? "Justamente", responde Amis, "por isso expus os meus mortos para uma comparação, para que meus leitores avaliassem o peso de uma morte e depois o multiplicassem por 20 milhões. Não é que eu sinta por cada um deles o que senti por meu pai ou por Sally. Mas, enquanto escrevia o livro, surpreendi-me muitas vezes pensando no peso que a morte de todas aquelas pessoas deveria significar para a humanidade".
Para o autor, é tão difícil explicar o comportamento dos intelectuais do Ocidente frente ao terror soviético quanto o terror propriamente. "Os dois estão fortemente conectados. É uma antiga fraqueza humana mostrar simpatia ao pobre e ao oprimido. Qualquer coisa que se proclame estar do lado destes é visto com uma estranha indulgência."
Para Amis, o apoio ao comunismo também misturava-se com a oposição unificada contra o fascismo. "Ser anticomunista podia ser confundido com estar do lado do fascismo, que já se provou ser um mal maior, apesar de tudo."
Amis especula por que sempre se fizeram piadas sobre o fracasso soviético, mas se riu bem menos do nazismo alemão, "a risada tornou-se impossível depois de Auschwitz. Já no caso russo, as piadas e o sarcasmo ajudavam a não-aceitação da catástrofe do projeto implementado".
Amis segue enumerando os motivos pelos quais crê que o discurso soviético foi tão convincente. "Aqueles que acreditaram nele queriam mostrar descontentamento com o status quo de seus próprios países ou desejavam escandalizar seus pais. Ou, ainda, ambicionavam compartilhar o sentimento ilusório de estarem envolvidos em eventos mundiais, recebendo ordens diretas de Moscou. Por fim, havia também o fato de que os eventos terríveis eram tão terríveis que não podiam ser dignos de crença."

11 de setembro
No livro, Amis diz que "em 1968 o mundo parecia caminhar para a esquerda como nunca o fizera, e como provavelmente nunca o fará novamente". Hoje, acredita, há uma tendência à direita, mas que há pouca possibilidade de um extremo ou outro serem atingidos novamente. "O mundo atingiu seu momento mais à direita em 1939, assim como à esquerda em 1968. Nada do que possamos ver na Europa hoje -nem Berlusconi, nem Le Pen, nem ninguém- pode ser comparado ao que emergia naquela época na Alemanha, Itália e Japão."
Mas o autor chama a atenção para os EUA. "O americanismo que está crescendo na Europa é muito perigoso e deve ser analisado com atenção. Acho que temos de observar de perto e de maneira muito crítica os passos que a América está dando. Coisas que estão sendo decididas lá agora dominarão, pelo menos, o próximo século. É um momento histórico muito perigoso", afirma.
A guerra contra o terror, por certo, potencializa esse quadro? "Sim, e este episódio já envolveu a América em várias contradições, em alianças indecorosas e barganhas para manter Israel e Rússia sob o guarda-chuva de Bush. É uma idéia enganosa a de que a América é a terra da liberdade e que só ela pode provê-la a outros países. Só Deus sabe onde isso pode nos levar."
Amis acredita que o que está sendo revisto desde 11 de setembro "não são as fraquezas norte-americanas, mas sim a força de sua rede de poder e como o uso desta irá afetar a todos".


KOBA THE DREAD - LAUGHTER AND THE TWENTY MILLION.
Autor: Martin Amis.
Lançamento: Talk Miramax (importado).
Quanto: R$ 106,04 (306 págs.).
Onde comprar: www.livcultura.com.br.




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