São Paulo, quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

31ª Mostra de SP - Análise

Jia Zhang-ke e o cinema do presente

Jovem cineasta chinês é quem mais bem captura e traduz as mutações aceleradas e violentas por que passa seu país

WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Cinematografias geralmente eclodem no momento em que culturas específicas passam por momentos de ruptura. Foi assim com o neo-realismo e a reconstrução de uma identidade nacional italiana, com a nouvelle vague francesa e a crise de valores que anunciou Maio de 1968, com o cinema novo e o desejo de se pensar um país independente e original, com o cinema independente americano dos anos 70 e a Guerra do Vietnã.
Nos anos 60 e 70, Antonioni talvez tenha sido quem mais bem exprimiu como as crises sociais e políticas afetam as consciências individuais. Foi também quem melhor falou da relação conflituosa entre a geografia física, em transformação acelerada, e a geografia humana. Seus personagens estão em descompasso com seu tempo, estrangeiros a um mundo onde não se reconhecem mais.
Hoje, não há país que passe por mutações tão aceleradas e violentas quanto a China. Não há quem as capture e traduza com mais acuidade do que Jia Zhang-ke. De "Pickpocket", seu primeiro filme inspirado pela obra-prima de Bresson, até "Em Busca da Vida", passando pelo excelente "Plataforma", a retrospectiva que a Mostra dedica ao jovem cineasta chinês permite entender toda a extensão dos traumas vividos num país que abandonou a liturgia maoísta para se abrir abruptamente ao mercado.
Permite, também, acompanhar a trajetória de um grande cineasta. Duração e expressividade dos planos, radicalidade narrativa, interação entre tempo e espaço, capacidade de registrar aquilo que está entre as coisas, sensibilidade para capturar o conflito entre o homem e o meio: sintomaticamente, há mais a unir Jia Zhang-ke e Antonioni do que talvez seja perceptível à primeira vista.

Entre gêneros
Ambos navegaram constantemente do documentário à ficção, e vice-versa. "A Aventura" se alimenta de um documentário que Antonioni realizou sobre a Sicília, assim como "A Noite" se inspira em outro documentário que o mestre de Ferrara realizou sobre os subúrbios de Milão.
O extraordinário "Em Busca da Vida", de Jia Zhang-ke, dialoga com "Dong", documentário que ele realizou sobre um pintor que retrata os mesmos personagens que aparecerão mais tarde na obra de ficção. "Prazeres Desconhecidos" era, no início, um projeto de filme documental que derivou para a ficção.
Ambos realizaram filmes com uma qualidade eminentemente sensorial. Em Antonioni, a relação dos personagens com o mundo é quase sempre epidérmica, feita da percepção de cores, ruídos e sensações dissonantes. A trilogia formada por "Blow Up", "Passageiro -Profissão Repórter" e "Zabriskie Point" se baseia nessa crença em um "cinema indireto", ou seja, que não é nunca literal.
Em filmes de Jia Zhang-ke como "O Mundo" ou "Em Busca da Vida", o espectador vivencia sensações semelhantes. São filmes que nos libertam da tradição narrativa derivada da literatura, do texto, do explicar. O espectador é convidado a co-habitar o universo do personagem, sentir com ele, entender pela cumplicidade e não pela explanação. Não estamos olhando através da janela -somos imersos pela paisagem.

Silêncio
Tanto Antonioni quanto Jia Zhang-ke acreditam no não-dito e no silêncio como elementos narrativos essenciais. Propõem um cinema em que o invisível é mais importante do que aquilo que está à mostra. E fazem um cinema de ruptura, que experimenta sem nunca ser complacente ou auto-referente.
Experimentam também com a tecnologia, colocando-a a seu serviço. Hoje, não há cineasta que use a câmera digital de forma mais livre e pertinente do que Jia Zhang-ke. "O Mundo" é a prova viva disso -o mundo do simulacro, da multiplicação de telas e imagens num parque de diversão da periferia de Pequim se casa perfeitamente com a nitidez clínica, quase artificial, do universo digital.
Mais do que tudo, se há algo a unir dois grandes cineastas aparentemente distantes no tempo e no espaço, é o desejo comum de falar do homem em equilíbrio instável. Frágil, passageiro de uma história que parece ultrapassá-lo. Nada é mais revelador disso do que o plano final de "Em Busca da Vida", sublime, em que um trapezista tenta se equilibrar numa corda bamba entre dois prédios em desconstrução. Foi-se Antonioni, mas Jia Zhang-ke chegou para alimentar o melhor cinema: o da invenção constante.


WALTER SALLES, 51, é diretor de "Diários de Motocicleta" e "Central do Brasil", entre outros, e co-diretor de "Terra Estrangeira", em colaboração com Daniela Thomas


Texto Anterior: Jia Zhang-Ke por Walter Salles
Próximo Texto: Saiba mais: Mostra exibe obra completa e faz debate
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.