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31ª Mostra de SP - Análise
Jia Zhang-ke e o cinema do presente
Jovem cineasta chinês é quem mais bem captura e traduz as mutações aceleradas e violentas por que passa seu país
WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Cinematografias geralmente eclodem no momento em que culturas
específicas passam por momentos de ruptura. Foi assim
com o neo-realismo e a reconstrução de uma identidade nacional italiana, com a nouvelle
vague francesa e a crise de valores que anunciou Maio de 1968,
com o cinema novo e o desejo
de se pensar um país independente e original, com o cinema
independente americano dos
anos 70 e a Guerra do Vietnã.
Nos anos 60 e 70, Antonioni
talvez tenha sido quem mais
bem exprimiu como as crises
sociais e políticas afetam as
consciências individuais. Foi
também quem melhor falou da
relação conflituosa entre a geografia física, em transformação
acelerada, e a geografia humana. Seus personagens estão em
descompasso com seu tempo,
estrangeiros a um mundo onde
não se reconhecem mais.
Hoje, não há país que passe
por mutações tão aceleradas e
violentas quanto a China. Não
há quem as capture e traduza
com mais acuidade do que Jia
Zhang-ke. De "Pickpocket", seu
primeiro filme inspirado pela
obra-prima de Bresson, até
"Em Busca da Vida", passando
pelo excelente "Plataforma", a
retrospectiva que a Mostra dedica ao jovem cineasta chinês
permite entender toda a extensão dos traumas vividos num
país que abandonou a liturgia
maoísta para se abrir abruptamente ao mercado.
Permite, também, acompanhar a trajetória de um grande
cineasta. Duração e expressividade dos planos, radicalidade
narrativa, interação entre tempo e espaço, capacidade de registrar aquilo que está entre as
coisas, sensibilidade para capturar o conflito entre o homem
e o meio: sintomaticamente, há
mais a unir Jia Zhang-ke e Antonioni do que talvez seja perceptível à primeira vista.
Entre gêneros
Ambos navegaram constantemente do documentário à ficção, e vice-versa. "A Aventura"
se alimenta de um documentário que Antonioni realizou sobre a Sicília, assim como "A
Noite" se inspira em outro documentário que o mestre de
Ferrara realizou sobre os subúrbios de Milão.
O extraordinário "Em Busca
da Vida", de Jia Zhang-ke, dialoga com "Dong", documentário que ele realizou sobre um
pintor que retrata os mesmos
personagens que aparecerão
mais tarde na obra de ficção.
"Prazeres Desconhecidos" era,
no início, um projeto de filme
documental que derivou para a
ficção.
Ambos realizaram filmes
com uma qualidade eminentemente sensorial. Em Antonioni, a relação dos personagens
com o mundo é quase sempre
epidérmica, feita da percepção
de cores, ruídos e sensações
dissonantes. A trilogia formada
por "Blow Up", "Passageiro -Profissão Repórter" e "Zabriskie Point" se baseia nessa crença em um "cinema indireto", ou
seja, que não é nunca literal.
Em filmes de Jia Zhang-ke
como "O Mundo" ou "Em Busca da Vida", o espectador vivencia sensações semelhantes. São
filmes que nos libertam da tradição narrativa derivada da literatura, do texto, do explicar.
O espectador é convidado a
co-habitar o universo do personagem, sentir com ele, entender pela cumplicidade e não pela explanação. Não estamos
olhando através da janela -somos imersos pela paisagem.
Silêncio
Tanto Antonioni quanto Jia
Zhang-ke acreditam no não-dito e no silêncio como elementos narrativos essenciais. Propõem um cinema em que o invisível é mais importante do
que aquilo que está à mostra. E
fazem um cinema de ruptura,
que experimenta sem nunca
ser complacente ou auto-referente.
Experimentam também com
a tecnologia, colocando-a a seu
serviço. Hoje, não há cineasta
que use a câmera digital de forma mais livre e pertinente do
que Jia Zhang-ke. "O Mundo" é
a prova viva disso -o mundo do
simulacro, da multiplicação de
telas e imagens num parque de
diversão da periferia de Pequim se casa perfeitamente
com a nitidez clínica, quase artificial, do universo digital.
Mais do que tudo, se há algo
a unir dois grandes cineastas
aparentemente distantes no
tempo e no espaço, é o desejo
comum de falar do homem em
equilíbrio instável. Frágil, passageiro de uma história que
parece ultrapassá-lo. Nada é
mais revelador disso do que o
plano final de "Em Busca da
Vida", sublime, em que um trapezista tenta se equilibrar numa corda bamba entre dois
prédios em desconstrução.
Foi-se Antonioni, mas Jia
Zhang-ke chegou para alimentar o melhor cinema: o da invenção constante.
WALTER SALLES, 51, é diretor de "Diários de
Motocicleta" e "Central do Brasil", entre outros,
e co-diretor de "Terra Estrangeira", em colaboração com Daniela Thomas
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