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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Os coxos também dançam
House é uma reencarnação de Sherlock Holmes. O próprio criador da série não nega as influências
EU PRECISO de ajuda. Urgente.
Três semanas fechado em casa, o telefone religiosamente
desligado. Trabalho por fazer. Louça
por lavar. Amigos que batem à porta,
aguardam, desesperam e partem. E
eu, com barba de profeta e cabelo de
Tarzan, comendo Cheetos e fedendo como a Cheetah, de pijama e robe, e visionando todas as temporadas de "House". Terei cura? Pior: terei defesa? Sim, eu sei: não existe publicação, site ou mero blog que não
diga o óbvio. House é uma reencarnação de Sherlock Holmes. O próprio criador da série, David Shore,
não nega as influências e as evidências. Sherlock investigava crimes?
House investiga doenças. Sherlock
não precisava de recolhas empíricas,
optando antes, na boa tradição idealista, por deduções científicas? House também não precisa: o doente é
dispensável, a doença é tudo que interessa. Sherlock era um solitário e
um celibatário? House solitário é.
Sherlock tinha pouco amigos -um
único, na verdade? House tem Wilson e sua paciência de santo. Sherlock, nas horas de lazer, permitia-se
a umas notas de violino? House prefere a guitarra e o piano. E se Sherlock não resistia ao ópio e à cocaína,
House prefere os analgésicos para
matar as dores da perna, ou da alma.
Mas isso não chega. É preciso
mais. Eu preciso de mais. Porque o
sucesso de Sherlock Holmes e de
House também explica a época em
que ambos viveram. E então recordo
Londres, a capital do mundo no século 19, quando Jack, o Estripador
andava à solta para a perdição das
mulheres. Tirando os melhores
bairros, como Belgravia ou Mayfair,
Londres era um viveiro de crime e
delinqüência. O sítio perfeito para o
detetive perfeito. E o detetive apareceu: uma criação de Arthur Conan
Doyle que depressa ganhou existência independente do criador. Ainda
hoje o nº 221 B de Baker Street recebe correspondência para ele: novos
casos, novas angústias, pedidos de
horários e de honorários. A porta é
sede de um banco, que tem departamento para responder às cartas.
Que, apesar de muitas, vão decrescendo com o tempo. Elementar,
meu caro Watson: o crime foi recuando na vida cotidiana do homem
ocidental. Tirando bolsas de pobreza e violência, na África ou na América Latina, é possível que um europeu ou um norte-americano atravesse a vida sem jamais conhecer
um roubo, uma agressão, um homicídio. Exceto pela TV. O grande medo do século 21 para o Ocidente rico
não é mais o crime, como na Inglaterra vitoriana. O grande medo é a
saúde: vivemos mais, vivemos melhor; mas essa longevidade, aliada ao
culto do corpo e da juventude, tornou-nos mais medrosos, atentos, hipocondríacos.
Foi assim que Sherlock Holmes
deu lugar a Gregory House. E foi assim que eu, um amante de Sherlock,
encontro House e vicio-me novamente. Amigos vários murmuram
que a explicação para o fato não é
histórica; é bem pessoal. E acrescentam que eu nunca resisti a coxos, na
medida em que também sou um.
Mentira. Coxo, House? Coxo, eu?
Como Sherlock cem anos atrás,
House relembra ao mundo que a
única elegância que fica é a inteligência humana a dançar sapateado.
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