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MARCELO COELHO
Um poeta nos tempos da auto-ajuda
Rilke é o primeiro a falar contra a "auto-ajuda", mas faz incursões no edificante em "Cartas..."
TODO CRÍTICO, todo intelectual,
todo escritor que se preze já
sentiu a obrigação "cívica",
por assim dizer, de condenar os livros de auto-ajuda. São um alvo fácil, aliás: basta ler um ou dois para
saber o quanto se repetem, o quanto
mentem, o quanto simplificam...
Mais difícil, acho, é dispensá-los
totalmente, uma vez que a maioria
dos intelectuais tende a ser otimista
com relação aos poderes da palavra
escrita. Mais do que isso, uma recusa
completa ao espírito dos livros de
auto-ajuda talvez exija um tipo de
atitude que, no mundo moderno,
pouca gente está disposta a possuir.
Em outros tempos, entendia-se o
sofrimento como um castigo ou
uma bênção. Mas, quando predomina o interesse em evitá-lo (o que me
parece bem mais saudável), uma
certa inclinação para a auto-ajuda
pode aparecer até mesmo em livros
muito melhores do que os habitualmente classificados nessa rubrica.
Emerson, Proust, Montaigne -eu
seria injusto se não dissesse que esses autores me "auto-ajudaram"
bastante. Mais um livro pode ser colocado nessa prateleira, recém-lançado pela Martins Fontes.
Trata-se de "Cartas do Poeta sobre a Vida", que contém uma seleção
de trechos da vasta correspondência
de Rainer-Maria Rilke (1875-1926),
bem mais variada do que suas já notáveis "Cartas a um Jovem Poeta"
fariam imaginar.
Naturalmente, o primeiro a falar
contra a "auto-ajuda" é o próprio
Rilke. "Está fora, totalmente fora de
questão, fazer livros "de ajuda'", dizia
ele a Nanny Wunderly-Volkart em
novembro de 1925. "No fundo, ninguém na vida pode ajudar outra pessoa", escreve, em 1904. "O que, no
fim, seria mais inútil para mim do
que uma vida consolada?", pergunta-se, em 1921.
Mas não faltam ao livro incursões
no edificante. Em seu diário de 1898,
Rilke anota: "Levante-se com alegria em seus dias de trabalho, se você puder. E, se não puder, o que o impede? Há algo de pesado no caminho? O que você tem contra o pesado? Que ele possa matá-lo? Então
ele é poderoso e forte. Isso você sabe
sobre ele. E o que você sabe sobre o
leve? Nada".
A atração pelo "pesado", que talvez devêssemos entender também
como o "grave", está, sem dúvida, na
raiz de muitos pensamentos de Rilke. "Se, para muitos, a vida de repente se torna mais fácil, mais despreocupada e mais alegre, isso é porque
eles pararam de levá-la a sério, de
carregá-la realmente", afirma o poeta. De resto, ele sempre contou com
a ajuda financeira de admiradores.
A gravidade pode ser, como tantas
outras coisas, fruto de uma existência em que o sofrimento se rodeia de
luxo e privilégio. Seja como for, essa
"dependência" de um alto mecenato
se traduz, em Rilke, num curioso e
profundo elogio da infância. Toda
criança, como se sabe, precisa de
cuidados externos, é justamente incapaz de "auto-ajuda". Mas a dependência infantil se transforma, nas
cartas do poeta, em seu contrário.
"A infância é um país independente de tudo", afirma Rilke, lembrando
que, quando era criança, todas as
coisas tinham para ele significado
especial. "Nenhuma tinha mais valor do que outra. A justiça pairava
sobre elas. Cada coisa podia uma vez
parecer a única, podia ser destino:
uma ave que vinha voando pela noite [...], uma chuva de verão que
transformava o jardim [...], um seixo
de forma estranha, interpretável: tudo era como se soubéssemos mais
sobre isso do que as pessoas grandes. Parecia que a gente podia ficar
feliz e grande com cada coisa, mas
também que podia morrer em cada
coisa..."
De terror, portanto, e não só de
encantamento, compõe-se esse
"fundo de investimentos" depositado na memória do poeta, do qual ele
irá tirar a matéria de seus versos.
Outro poeta, William Wordsworth (1770-1850), está, sem dúvida, na origem dessas sensações. Acaba de sair, pela Ateliê Editorial, uma
seleção infelizmente curta de seus
poemas, em que podemos ler: "Como é estranho que todos/ Os terrores, dores e misérias primeiras,/ Arrependimentos, preocupações e
langores,/ Enredados em minha
mente, desempenharam/ Um papel
necessário na elaboração/ Da tranqüila existência, que é minha quando/ Sou digno de mim!".
Não é pouca coisa ser capaz de dizer isso.
De minha parte, me contento com
um mês de férias. Volto no mês de
dezembro.
coelhofsp@uol.com.br
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