São Paulo, quarta-feira, 31 de outubro de 2007

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MARCELO COELHO

Um poeta nos tempos da auto-ajuda

Rilke é o primeiro a falar contra a "auto-ajuda", mas faz incursões no edificante em "Cartas..."

TODO CRÍTICO, todo intelectual, todo escritor que se preze já sentiu a obrigação "cívica", por assim dizer, de condenar os livros de auto-ajuda. São um alvo fácil, aliás: basta ler um ou dois para saber o quanto se repetem, o quanto mentem, o quanto simplificam...
Mais difícil, acho, é dispensá-los totalmente, uma vez que a maioria dos intelectuais tende a ser otimista com relação aos poderes da palavra escrita. Mais do que isso, uma recusa completa ao espírito dos livros de auto-ajuda talvez exija um tipo de atitude que, no mundo moderno, pouca gente está disposta a possuir.
Em outros tempos, entendia-se o sofrimento como um castigo ou uma bênção. Mas, quando predomina o interesse em evitá-lo (o que me parece bem mais saudável), uma certa inclinação para a auto-ajuda pode aparecer até mesmo em livros muito melhores do que os habitualmente classificados nessa rubrica.
Emerson, Proust, Montaigne -eu seria injusto se não dissesse que esses autores me "auto-ajudaram" bastante. Mais um livro pode ser colocado nessa prateleira, recém-lançado pela Martins Fontes.
Trata-se de "Cartas do Poeta sobre a Vida", que contém uma seleção de trechos da vasta correspondência de Rainer-Maria Rilke (1875-1926), bem mais variada do que suas já notáveis "Cartas a um Jovem Poeta" fariam imaginar.
Naturalmente, o primeiro a falar contra a "auto-ajuda" é o próprio Rilke. "Está fora, totalmente fora de questão, fazer livros "de ajuda'", dizia ele a Nanny Wunderly-Volkart em novembro de 1925. "No fundo, ninguém na vida pode ajudar outra pessoa", escreve, em 1904. "O que, no fim, seria mais inútil para mim do que uma vida consolada?", pergunta-se, em 1921.
Mas não faltam ao livro incursões no edificante. Em seu diário de 1898, Rilke anota: "Levante-se com alegria em seus dias de trabalho, se você puder. E, se não puder, o que o impede? Há algo de pesado no caminho? O que você tem contra o pesado? Que ele possa matá-lo? Então ele é poderoso e forte. Isso você sabe sobre ele. E o que você sabe sobre o leve? Nada".
A atração pelo "pesado", que talvez devêssemos entender também como o "grave", está, sem dúvida, na raiz de muitos pensamentos de Rilke. "Se, para muitos, a vida de repente se torna mais fácil, mais despreocupada e mais alegre, isso é porque eles pararam de levá-la a sério, de carregá-la realmente", afirma o poeta. De resto, ele sempre contou com a ajuda financeira de admiradores.
A gravidade pode ser, como tantas outras coisas, fruto de uma existência em que o sofrimento se rodeia de luxo e privilégio. Seja como for, essa "dependência" de um alto mecenato se traduz, em Rilke, num curioso e profundo elogio da infância. Toda criança, como se sabe, precisa de cuidados externos, é justamente incapaz de "auto-ajuda". Mas a dependência infantil se transforma, nas cartas do poeta, em seu contrário.
"A infância é um país independente de tudo", afirma Rilke, lembrando que, quando era criança, todas as coisas tinham para ele significado especial. "Nenhuma tinha mais valor do que outra. A justiça pairava sobre elas. Cada coisa podia uma vez parecer a única, podia ser destino: uma ave que vinha voando pela noite [...], uma chuva de verão que transformava o jardim [...], um seixo de forma estranha, interpretável: tudo era como se soubéssemos mais sobre isso do que as pessoas grandes. Parecia que a gente podia ficar feliz e grande com cada coisa, mas também que podia morrer em cada coisa..."
De terror, portanto, e não só de encantamento, compõe-se esse "fundo de investimentos" depositado na memória do poeta, do qual ele irá tirar a matéria de seus versos.
Outro poeta, William Wordsworth (1770-1850), está, sem dúvida, na origem dessas sensações. Acaba de sair, pela Ateliê Editorial, uma seleção infelizmente curta de seus poemas, em que podemos ler: "Como é estranho que todos/ Os terrores, dores e misérias primeiras,/ Arrependimentos, preocupações e langores,/ Enredados em minha mente, desempenharam/ Um papel necessário na elaboração/ Da tranqüila existência, que é minha quando/ Sou digno de mim!". Não é pouca coisa ser capaz de dizer isso.
De minha parte, me contento com um mês de férias. Volto no mês de dezembro.


coelhofsp@uol.com.br

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