São Paulo, quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

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MARCELO COELHO

Vamos em frente


É o futuro, e não o passado, que ocupa todos os personagens de "Café dos Maestros"

PARA QUEM fica meio deprimido ou nostálgico nesta época do ano, assistir a um documentário sobre a velha guarda do tango argentino pode parecer má idéia.
Felizmente, "Café dos Maestros" não tem nada de lamurioso e melancólico. O filme de Miguel Kohan nos faz conhecer personagens bem-humorados, às vésperas de um concerto triunfal no teatro Colón de Buenos Aires.
Musicalmente, estão todos em ótima forma e, na trabalheira dos ensaios, não dispõem de muito tempo para chorar os anos que não voltam mais.
É certo que muitos desses astros do tango estão velhíssimos. O filme é um festival de cabelos tingidos, dentaduras descomunais, bigodinhos improváveis e mesmo, triste notar, alguns aparelhos de surdez.
Não importa: ponha-se esse clube da quarta idade à frente de um microfone, ou debaixo da luz de um teatro, e eis que todos se arremessam como tigres sobre a música, numa espécie de festim carnívoro, arrancando de golpe as vísceras e o coração da partitura.
Talvez exista no próprio espírito do tango essa disposição súbita para a violência. Qualquer floreio sonhador logo se vê rasgado por aquele ritmo imperativo, frontal e repentino, e, mais do que em outros gêneros musicais, é como se o intérprete, em vez de tocar as notas, fosse "tocado" por elas, arrastado por sua linguagem impulsiva e fatal.
Justamente, o que há de implacável e cruel nesse ritmo termina depurando todo o conteúdo lamurioso que, como se sabe, é comuníssimo nas letras de tango.
Falar do passado perdido é uma característica que o tango parece ter adquirido de nascença. Já em 1930, ou antes, suas letras reclamavam do velho bairro que já não era mais o mesmo, do tempo que não voltava mais.
A coisa é tão antiga que um certo tango recorda os felizes tempos em que os jovens não usavam brilhantina no cabelo. Desse modo, com exceção de algumas fotos de arquivo, "Café dos Maestros" não se dedica a muitos retrospectos. Ficamos, aliás, sem muita informação histórica sobre seus personagens.
Os objetivos do documentário são outros. Tem-se a impressão de que, sem perder a grande ternura que os personagens inspiram, "Café dos Maestros" imita um bocado o próprio estilo musical do tango. Trata-se de avançar sempre, num ritmo quase obsessivo, com a obstinação de um cavalo de corrida ou de um atacante de futebol.
Como o documentário apresenta os preparativos para um grande recital, toda a sua narrativa ganha esse empurrão; é o futuro, não o passado, o que ocupa todos seus personagens.
Se algumas imagens se repetem ao longo de "Café dos Maestros", é como se fossem determinadas frases musicais de uma canção; estribilhos podem ser identificados, mas um tango sempre sabe absolutamente onde quer chegar.
Outra semelhança pode ser apontada. No tango, o ritmo pontuado da música estabelece imediatamente, para o ouvinte, expectativas muito fortes, de modo que às vezes nem é preciso atendê-las completamente.
Uma simples alusão à nota que deveria aparecer, um escorregãozinho de leve numa tecla do piano, ou mesmo o silêncio, já bastam. Um ritmo cortado, quase fotográfico domina a montagem do filme. De uma canção inteira, resta por vezes apenas uma frase. Uma mulher passa na rua por um instante, e a câmera mal se dá ao trabalho de enquadrá-la. Vitrines, ônibus, faróis aparecem na tela como notas esparsas de uma música urbana altamente estilizada.
Falando da poesia de Baudelaire, o crítico Walter Benjamin apontou a importância da experiência do "choque" na vida moderna. A cidade se impõe à consciência dos seus habitantes com a velocidade de um raio; não há tempo para a assimilação.
Sem ser frenética, a montagem do filme obedece a esse ritmo, enquanto os violinos e bandoneones desferem seus relâmpagos sobre a platéia. Espera, suspense, arrojo implacável e dramático: há algo de baudelairiano na música do tango, que o filme retrata bem. Sem nostalgias, portanto: vamos em frente. Um novo ano começa. Que mais? Nada mais. Um dos músicos diz no filme que, para fazer um bom tango, é preciso saber jogar com as pausas, saber fazer bons silêncios.
É somente isso. Um ponto. Um parágrafo. E ponto final.

coelhofsp@uol.com.br


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