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MARCELO COELHO
Vamos em frente
É o futuro, e não o passado, que ocupa todos os personagens de "Café dos Maestros"
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PARA QUEM fica meio deprimido ou nostálgico nesta época
do ano, assistir a um documentário sobre a velha guarda do
tango argentino pode parecer má
idéia.
Felizmente, "Café dos Maestros"
não tem nada de lamurioso e melancólico. O filme de Miguel Kohan nos
faz conhecer personagens bem-humorados, às vésperas de um concerto triunfal no teatro Colón de Buenos Aires.
Musicalmente, estão todos em
ótima forma e, na trabalheira dos
ensaios, não dispõem de muito tempo para chorar os anos que não voltam mais.
É certo que muitos desses astros
do tango estão velhíssimos. O filme é
um festival de cabelos tingidos, dentaduras descomunais, bigodinhos
improváveis e mesmo, triste notar,
alguns aparelhos de surdez.
Não importa: ponha-se esse clube
da quarta idade à frente de um microfone, ou debaixo da luz de um
teatro, e eis que todos se arremessam como tigres sobre a música, numa espécie de festim carnívoro, arrancando de golpe as vísceras e o coração da partitura.
Talvez exista no próprio espírito
do tango essa disposição súbita para
a violência. Qualquer floreio sonhador logo se vê rasgado por aquele ritmo imperativo, frontal e repentino,
e, mais do que em outros gêneros
musicais, é como se o intérprete, em
vez de tocar as notas, fosse "tocado"
por elas, arrastado por sua linguagem impulsiva e fatal.
Justamente, o que há de implacável e cruel nesse ritmo termina depurando todo o conteúdo lamurioso
que, como se sabe, é comuníssimo
nas letras de tango.
Falar do passado perdido é uma
característica que o tango parece ter
adquirido de nascença. Já em 1930,
ou antes, suas letras reclamavam do
velho bairro que já não era mais o
mesmo, do tempo que não voltava
mais.
A coisa é tão antiga que um certo
tango recorda os felizes tempos em
que os jovens não usavam brilhantina no cabelo.
Desse modo, com exceção de algumas fotos de arquivo, "Café dos
Maestros" não se dedica a muitos
retrospectos. Ficamos, aliás, sem
muita informação histórica sobre
seus personagens.
Os objetivos do documentário são
outros. Tem-se a impressão de que,
sem perder a grande ternura que os
personagens inspiram, "Café dos
Maestros" imita um bocado o próprio estilo musical do tango.
Trata-se de avançar sempre, num
ritmo quase obsessivo, com a obstinação de um cavalo de corrida ou de
um atacante de futebol.
Como o documentário apresenta
os preparativos para um grande recital, toda a sua narrativa ganha esse
empurrão; é o futuro, não o passado,
o que ocupa todos seus personagens.
Se algumas imagens se repetem ao
longo de "Café dos Maestros", é como se fossem determinadas frases
musicais de uma canção; estribilhos
podem ser identificados, mas um
tango sempre sabe absolutamente
onde quer chegar.
Outra semelhança pode ser apontada. No tango, o ritmo pontuado da
música estabelece imediatamente,
para o ouvinte, expectativas muito
fortes, de modo que às vezes nem é
preciso atendê-las completamente.
Uma simples alusão à nota que deveria aparecer, um escorregãozinho
de leve numa tecla do piano, ou mesmo o silêncio, já bastam.
Um ritmo cortado, quase fotográfico domina a montagem do filme.
De uma canção inteira, resta por vezes apenas uma frase. Uma mulher
passa na rua por um instante, e a câmera mal se dá ao trabalho de enquadrá-la. Vitrines, ônibus, faróis
aparecem na tela como notas esparsas de uma música urbana altamente estilizada.
Falando da poesia de Baudelaire, o
crítico Walter Benjamin apontou a
importância da experiência do "choque" na vida moderna. A cidade se
impõe à consciência dos seus habitantes com a velocidade de um raio;
não há tempo para a assimilação.
Sem ser frenética, a montagem do
filme obedece a esse ritmo, enquanto os violinos e bandoneones desferem seus relâmpagos sobre a platéia.
Espera, suspense, arrojo implacável e dramático: há algo de baudelairiano na música do tango, que o filme retrata bem. Sem nostalgias,
portanto: vamos em frente. Um novo ano começa. Que mais?
Nada mais. Um dos músicos diz no
filme que, para fazer um bom tango,
é preciso saber jogar com as pausas,
saber fazer bons silêncios.
É somente isso.
Um ponto.
Um parágrafo.
E ponto final.
coelhofsp@uol.com.br
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