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Crítica Romance

Obra sobre Holocausto abdica da singularidade trágica dos judeus

ALFREDO MONTE ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "Beatriz e Virgílio", Yann Martel discute a resistência contra a apropriação artística da Shoah (popularizada como Holocausto pela indústria cultural), evento tomado como único, e cuja forma "aceitável" de representação seria o testemunho.

Se para o autor de "A Vida de Pi" a questão revela-se espinhosa em 2010, imagine-se a perplexidade em 1959, com "A Morte do Inimigo".

Hans Keilson furtava-se a utilizar as palavras "judeu", "nazista" e "Hitler" ao longo do relato no qual seu protagonista é vítima daquela conhecida trajetória de banimento e clandestinidade, porque o "inimigo" -o qual lhe fora anunciado, ainda criança, pelo pai- precisava dele e do seu povo como bode expiatório.

Ao abdicar da singularidade trágica reivindicada pelos judeus, "A Morte do Inimigo" mostra como qualquer um pode ser peça da engrenagem da exclusão absoluta: negros segregados, gays, mulheres na Índia, muçulmanos diante da hostilidade ocidental, palestinos, ativistas de esquerda na ditadura.

A lista é atordoante -a particularidade é apenas o elemento mais dramático de uma equação atroz.

Não que Keilson deixe de explorar o que há de característico na experiência do narrador; todavia, ele executa um salto mortal que faz toda a originalidade do livro -valorizado poucos anos antes de sua morte, em 2011.

Entretanto, enquanto considero uma obra-prima seu outro romance publicado no Brasil, "Comédia em Tom Menor" (1947), impacientei-me com certas passagens rebarbativas de "A Morte do Inimigo", e sua forte tendência à lenga-lenga (ele tem o dobro da extensão do outro, e metade da sua eficácia enquanto estratégia narrativa).

Não se pode esquecer, porém, do tremendo achado já apontado, cujos efeitos se irradiam com vigor pela narrativa toda e, sobretudo, dos seus pontos altos, como o aterrador episódio em que, visitando a moça por quem está meio "caído", o herói acaba lanchando e bebendo com os amigos do irmão dela (são todos adeptos e entusiastas do "inimigo"), e um deles relata a profanação de um cemitério da qual fazia parte como neófito.

Raras vezes se mostrou de forma tão veraz como a brutalidade de um regime vai disseminando-se, desmoralizando imperceptivelmente todas as relações, e trazendo à tona tendências violentas latentes em determinados grupos.

Tudo numa cena só, cotidiana e banal: uma tertúlia entre jovens.

Quando um romance tem momentos extraordinários como esse, impossível não considerá-lo grandioso.


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