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Crítica - Romance

Português retrata delírio esquizofrênico de mulher torturada

ALCIR PÉCORA ESPECIAL PARA A FOLHA

Como sabem seus leitores, o romancista português António Lobo Antunes (1942) serviu como médico psiquiatra do Exército português em Angola, no início do conturbado processo de independência do país.

Em "Comissão das Lágrimas" (2011), Antunes justamente retoma esse tema das lutas de Angola, que o tornou mundialmente conhecido. Concentra-se, desta vez, nos eventos passados no período 1977-1979, marcado pelas lutas cruentas entre diversas facções políticas do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola).

O atentado fracassado contra Agostinho Neto, que exercia o poder desde a independência do país, em 1975, foi o estopim ou o pretexto para a criação de um Tribunal Militar Especial ou Tribunal Revolucionário, que comandou uma operação de perseguições, torturas e execuções de supostos dissidentes.

O número de mortos, durante os dois anos de funcionamento do tribunal, apelidado pitorescamente de "Comissão das Lágrimas", pode ter chegado a 80 mil, sem que haja fontes oficiais confiáveis a respeito ou sobre a própria existência da Comissão, dissolvida em 1979.

Tais eventos mapeiam o chão histórico do romance de Lobo Antunes, sempre mais aludido que diretamente narrado. O que se justifica plenamente, uma vez que o livro se apresenta como a transcrição do delírio esquizofrênico da personagem Cristina, mulher de 40 anos, internada numa clínica psiquiátrica de Lisboa.

Uma assombrada conjunção de vozes revela que veio ainda menina de África, que seu pai preto foi torturador da Comissão das Lágrimas e que sua mãe portuguesa, branca, se prostituía em Angola. Embaralhadas em sua cabeça, mal dissolvidas pelos remédios, as vozes compõem um tormentoso fluxo de consciência quebrado por fragmentos de diálogos e de imagens de episódios traumáticos.

Sobrepõem-se vislumbres de cenas nas quais a mãe paterna é humilhada pela patroa branca; em que o pai, garoto, sofre abuso no seminário de padres ou, adulto, é protagonista dos sinistros interrogatórios.

Intercalam-se imagens da mãe, violentada pelo tio, pelo dono da oficina e por outros mais; os passos de forçada alegria que dá como corista, emigrada em Angola; a sugestão do nome Cristina feita à mãe, grávida do rufião da companhia; a figura canhestra do preto que a criaria como pai, quando se apresenta à mãe, após um dos seus shows mambembes na periferia de Luanda.

O fluxo simultaneamente vertiginoso e repetitivo do relato produz um imediato efeito de obsessão e de lembrança lesada, mas também de dispersão e de redundância das várias vozes que se apoderam dele. O melhor do procedimento é a criação de analogias insuspeitas entre cenas disparatadas. Por exemplo, quando a colher de pau com que o pai espanca a patroa na cozinha é intercambiável com o pênis que penetra o colega de seminário.

Em lances assim, a narrativa ganha semelhança com o "interseccionismo" poético de Fernando Pessoa (1888-1935), no qual a multiplicidade de imagens se sobrepõe, com transparência, na consciência que as absorve.

O conjunto, contudo, não se resolve tão bem. A sequência das cenas recortada pelos fragmentos de fala parece obedecer a certo automatismo narrativo e a excessivos trejeitos estilísticos. Ambos amortecem a brutalidade dos episódios aludidos, seja como terror histórico, seja como processo doloroso de desmanche da subjetividade.


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