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João Pereira Coutinho

O herege viajante

O turismo de massas é o inferno na Terra e a água canalizada, uma das grandes conquistas do homem

Tempos atrás, as Nações Unidas deixaram uma sugestão para acabar com a fome no mundo: comer insetos. Segundo a ONU, gafanhotos, formigas ou besouros são altamente nutritivos, combatem a obesidade e têm a vantagem de existir em quantidades apreciáveis.

Aliás, com o tempero certo, esses pitéus são indistinguíveis dos vulgares camarões, das sofisticadas ostras ou dos repugnantes caracóis que os meus compatriotas gostam de comer nos meses de verão pelas esplanadas de Portugal.

Não sei o que pensou o leitor dessa sugestão gastronômica e assaz ecológica da ONU. Provavelmente, escutou com respeito e, em nome do Ambiente (com maiúscula), não fez comentários.

Eu, confesso, também não fiz nenhum. Preferi correr para o vaso sanitário e despejar os três últimos jantares só com a ideia de transformar as baratas da cozinha em guisado. Estarei sozinho no meu vergonhoso eurocentrismo?

Pelos vistos, não estou. Os comediantes Ricky Gervais e Stephen Merchant, criadores do brilhantíssimo "The Office", produziram uma série para a Sky que só agora assisti.

E assisti por conselho de uma amiga que, depois de provar primeiro, disse que o prato tinha a minha cara. O nome do produto é "An Idiot Abroad" (um idiota no estrangeiro) e ainda hoje não sei se o comentário dela era um elogio ou um insulto.

Tomo como um elogio. Até porque não me lembro de ter rido tanto e tão alto nos últimos tempos com uma premissa tão simples: Ricky Gervais e Stephen Merchant enviam um amigo para viajar pelo mundo com uma reduzida equipe de filmagens.

O amigo chama-se Karl Pilkington e é o típico "Little Englander" para quem a civilização só existe no nosso bairro e o resto do planeta é a mais pura barbárie. O lado brilhante do documentário é que Pilkington não é um ator; viajar para ele é mesmo uma forma de tortura; e as opiniões sobre o mundo que ele visita são genuínas e hilariantes.

Essa autenticidade começa logo no primeiro episódio, quando o destino é a China e a gastronomia local é apresentada ao viajante Pilkington.

O viajante confronta-se com o cardápio --uma longa lista de seres rastejantes-- e depois filosofa: "O problema da China é não haver uma separação rigorosa entre comida e bichos". Continua: "Na Inglaterra, quando se descobre uma coisa dessas na cozinha, as autoridades sanitárias fecham o restaurante; na China, servem de aperitivo". E conclui: "Se uma chinesa acorda e vê uma aranha no banheiro, não é de excluir que ela pense para si própria: O croissant fica para amanhã, vou comer já isso'".

"An Idiot Abroad" é esse estranho paradoxo: um documentário sobre viagens apresentado por alguém que detesta viajar e para quem o exotismo do Outro é uma fonte constante de suplícios.

Não interessa se o cenário é milenar ou, para usar a palavra cafona da indústria do turismo, "paradisíaco". Viajando pela muralha da China, pelas pirâmides do Egito ou até pelo Rio de Janeiro em pleno Carnaval, Pilkington tem um talento único para encontrar o aberrante e o assustador. Para dissertar sobre o assunto com graça natural. E para suspirar constantemente pelo regresso a casa.

Escusado será dizer que o programa teve um sucesso imediato e que Pilkington virou uma das maiores estrelas televisivas no Reino Unido. Já existem livros sobre o assunto. A série já teve três temporadas. E ainda ninguém conseguiu explicar ao certo como é que alguém sem "superego" consegue conquistar não só o gosto do público, mas também da crítica.

Arrisco uma hipótese: porque a crítica tem "superego" a mais. E, afogada pelas cartilhas que gostam de impor um único código de pensamentos e comportamentos sobre o Outro, talvez ela sinta uma secreta admiração por alguém que destrói todos os códigos.

Porque, contas feitas, é indiferente saber se concordamos ou discordamos do viajante, embora eu concorde que o turismo de massas é o inferno na Terra e a água canalizada, uma das grandes conquistas do homem.

O que interessa é ver Karl Pilkington em ação (e em sofrimento) para recordarmos apenas como era a liberdade e mesmo a idiotia antes da fogueira das inquisições laicas.


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