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Valores corporativos ditam o financiamento cultural

Cancelamento da exposição de Nan Goldin revela problemas de patrocínio incentivado

Exibição de obras de arte está sujeita a critérios como identificação do projeto com a marca do financiador

SILAS MARTÍ
DE SÃO PAULO

Quase um ano depois de aprovar em edital uma mostra da artista Nan Goldin, o centro cultural Oi Futuro, no Rio, cancelou a exposição na semana passada, faltando um mês para a abertura.

A alegação foi de que as imagens de crianças diante de atos sexuais que integram a obra da norte-americana iam contra a orientação dos programas educativos da Oi.

A curadora da mostra, Lígia Canongia, classificou a decisão como "arbitrária e prepotente". O episódio causou estardalhaço no meio artístico e revelou que a arte, cada vez mais produzida e exibida graças a leis de incentivo, pode estar a serviço de valores corporativos.

Exposições realizadas em endereços como Oi Futuro, Caixa Cultural e Centro Cultural Banco do Brasil passam por um longo e complexo sistema de seleção que leva em conta a visibilidade que podem trazer para a marca patrocinadora e os valores defendidos por essas empresas.

"Um projeto, mesmo que tenha tino cultural, pode ferir o pensamento dos meus clientes", diz Gerson Bordignon, gerente de planejamento da Caixa Cultural, que destina R$ 30 milhões por ano a projetos artísticos. "Tomo cuidado para não chocar."

Em julho, a Caixa Econômica impediu a exibição, no Rio, de "A Serbian Film", com cenas de pedofilia e estupro, mesmo tendo aprovado o patrocínio para o festival em que o longa seria exibido.

"Esse filme divulga a degradação do ser humano", diz Bordignon. "Não queríamos a nossa marca atrelada a isso. Temos clientes aposentados, conservadores."

No caso do Centro Cultural Banco do Brasil, o conteúdo de uma exposição é conhecido em alguns casos até um ano antes de sua realização.

"Todas as propostas são lidas e avaliadas de acordo com o nosso eixo temático", afirma Rogério Campos, gerente de planejamento do CCBB paulistano. "Passamos tudo para a diretoria de marketing, que ratifica se esse projeto atende ou não à identidade do Branco do Brasil."

Mas nada impede que obras aceitas numa primeira análise sejam deixadas de lado mais adiante. No CCBB do Rio, um desenho de um pênis com terços -da artista Márcia X- foi retirado pela direção do banco há cinco anos, depois de uma onda de reclamações de visitantes.

Essa mesma obra havia sido exposta em São Paulo, mas não agradou no Rio. "Foi uma atitude absurda e lamentável", lembra Tadeu Chiarelli, curador daquela mostra. "Sempre pode emergir um puritanismo discutível."

A respeito do episódio, José do Nascimento Júnior, presidente do Instituto Brasileiro de Museus, diz ser preciso estudar sanções para empresas "que usam recursos públicos e praticam censura".

"Temos de pensar com esse viés: a lei [Rouanet] já determina que o julgamento do projeto seja técnico, e não estético", diz ele. "Uma empresa que aprova algo e depois recua não ajuda no financiamento cultural nem no pensamento sobre arte."

Moacir dos Anjos, curador da última Bienal de São Paulo, vê aí um possível "acovardamento" da instituição, que se recusa a exibir obras que "fogem aos valores do público ou de seus acionistas".

"Estão em jogo os valores morais das empresas", diz Dos Anjos. "É preciso repensar essa questão e não sujeitar a produção e a circulação de obras de arte a esses interesses e ao moralismo que domina decisões corporativas."

Na Fiat, por exemplo, empresa que patrocina a Bienal de São Paulo, esses valores são "italianidade e relevância". Qualquer vínculo com a Itália ou obra de um artista já consagrado no panteão das artes visuais tem mais chances de abocanhar parte dos R$ 15 milhões que a empresa destina por ano à cultura.

"Buscamos mais do que um retorno imediato de imagem", diz Marco Antônio Lage, da Fiat. "Definimos uma plataforma de atuação para dar acesso às artes visuais."

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