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Michel Laub

Vida capturada

Cada palavra ocupa um lugar específico numa cadeia de valores estéticos em constante mutação

O ato de escrever pode ser descrito em vários níveis, e alguém já disse que no mais pessoal deles o escritor é um tradutor de si mesmo. Ele transforma o universo inesgotável de sua mente, feito de sensações, sentimentos e intuições em geral abstratas, num outro código, a linguagem, que obedece a leis próprias de coerência.

É uma operação que envolve talento inventivo, não há dúvida. Como numa tradução, as palavras escolhidas para reproduzir o sentido original criam um novo sentido. Que precisa ser forte o suficiente, de maneira autônoma, para transmitir uma intensidade que até aqui só funcionou em outro contexto (histórico, cultural, linguístico, íntimo).

Mas só há liberdade de escolha se houver repertório. O talento não prescinde da técnica e de um esforço de conhecimento horizontal. Expressar o novo num idioma pressupõe conhecer o velho, idem o vigoroso em relação ao frouxo, o sujo em relação ao limpo e assim por diante. Cada palavra ocupa um lugar específico numa cadeia de valores estéticos em constante mutação.

Há poucas décadas, o processo de formalização do vocabulário tinha como principal matriz a fala, e entre um termo se tornar comum em conversas e chegar aos dicionários --ou aos livros, ou à imprensa-- havia um tempo razoável de consolidação, além de uma hierarquia mais rígida entre as instâncias.

Hoje é diferente. Boa parte da matriz já é escrita, dos e-mails às redes sociais, o que muda não apenas a velocidade de incorporação de gírias e clichês. Também o manejo da língua: mesmo ao postar um tuíte, nos acostumamos, o que é menos comum na fala, a escolher com certo cuidado uma palavra em detrimento de outras.

Quando as malandragens que essa escolha permite também se tornam familiares, a aura solene da escrita se enfraquece. O que ela expressa passa a ser visto com mais naturalidade e desconfiança. O bacharelismo ainda renitente na nossa ficção, ou o uso do jargão como instrumento de poder, inevitavelmente vira sinônimo de lero-lero.

É como se o modernismo, que simplificou e potencializou a gramática da elite letrada há mais de um século, começasse a se democratizar. Pense no contraste que é passar o dia imerso na sintaxe coloquial da internet e receber pelo correio, como um museu em papel de formas antigas de tratamento, uma ata de condomínio ou (meu caso frequente e triste) uma notificação do Detran.

Não estou certo se a mudança gerará efeitos positivos para quem vive de escrever. Por um lado, o contato diário do público com a leitura tende a gerar maior exigência, e portanto respostas mais elaboradas dos ficcionistas.

Por outro, uma cultura mais escrita que a de décadas anteriores, que tirou da TV a exclusividade na produção em massa de ideias e narrativas, não é garantia de qualidade. Ler mais não significa entender o que se está lendo, conforme provam os relinchos e dejetos nas caixas de comentários.

De qualquer modo, os desafios do escritor não mudaram. Continua necessário encontrar uma voz particular, que esteja à margem do oceano de timbres produzidos por todos o tempo inteiro. Continua necessário encontrar um espaço de privacidade reflexiva, o mais longe possível de modas formais e ideológicas. E o primeiro passo dessa grande busca, que só pode ser dado por meio da linguagem, ainda é escolher as palavras partindo de um universo limitado e ao mesmo tempo fluido.

A partir de critérios estéticos, cria-se a ética da ficção. O vocábulo exato é um clássico da linguagem pela beleza, feiura, elegância ou estranheza que sua cadência e melodia evocam de acordo com os parâmetros da época. E pela verdade peculiar que estabelece, em conjunto com outros vocábulos exatos em frases e parágrafos e capítulos.

Na esteira do que William Faulkner disse a respeito, o ciclo se completa quando o leitor se vê diante dessa construção, um código feito de sinais gráficos estáticos numa página ou tela, e eis que o movimento da vida capturado pelo escritor --ontem ou 3.000 anos atrás-- está de volta.

É um jeito artificial de evocar algo que nada tem de artificial. Uma tradução que é novamente traduzida pelos filtros pessoais e culturais do leitor. E uma definição, quem sabe, para o mistério e a maravilha da literatura.


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