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Marcelo Coelho

Nossa cidade

Em sua 'reconstrução' da peça de Thornton Wilder, Antunes Filho carrega na denúncia ideológica

Sofremos, e sentimos muita saudade, claro, quando morre uma pessoa querida. Mas a coisa pode ser pior ainda, se vista da perspectiva inversa. Imagine a dor dos mortos, se pudessem contemplar a vida dos familiares e dos entes queridos a quem deixaram.

Também eles, como os vivos, teriam de passar pelo longo trabalho do luto; a despedida não se completa de uma só vez. É preciso deixar que o tempo desfaça os laços do sentimento, até que por fim, em cada túmulo, os mortos se calem na indiferença, no descanso, no nada.

Essa ideia rende as passagens mais emocionantes de "Nossa Cidade", peça de Thornton Wilder (1897-1975) agora em cartaz no Sesc Consolação. A inversão de perspectivas, que surge na segunda parte do espetáculo, já se anuncia em algumas falas iniciais dos personagens.

Um rapazinho e sua vizinha da mesma idade se descobrem, ou melhor, se adivinham apaixonados um pelo outro. A noite cai sobre uma cidadezinha americana; o ano é 1901.

Você sabia, pergunta ele, que a luz dessas estrelas demorou milhões de anos para chegar até nós? Vemos o cintilar de mundos que, provavelmente, estão mortos há muito tempo...

Talvez seja o contrário, diz a menina. Talvez nós é que estejamos mortos para eles...

É uma daquelas frases que funcionam lindamente no teatro. A plateia, que ouve aquele diálogo supostamente ocorrido há mais de um século, também se sente como as estrelas.

Acompanha em silêncio o cotidiano de pessoas quaisquer (um médico, um leiteiro, o organista da igreja), que ganham vida no palco, mas só ao preço de não saberem que já estão mortas, e que nunca existiram de verdade.

Mas por QUÊÊ os aTOOres TÊÊM de faLAAAAR deeeste jeiTOOO o TEEMpo inteirOOO? Não é bem uma cantoria, é uma entonação muito artificial, às vezes carregada de sotaque paulistano: "Descêêindo a rua", passa o garoto "inteligêêinte"...

No caso, é possível que o diretor Antunes Filho tenha mesmo desejado acentuar a falsidade, a irrealidade daquela vidinha no interior dos Estados Unidos.

Pobre Thornton Wilder! Sua peça teve sucesso imediato, ao estrear em 1938. Logo vieram as críticas. É que "Nossa Cidade" faz uso de uma espécie de narrador, de apresentador, que se coloca fora da ação; a vida dos personagens ganha assim um olhar distanciado, e o realismo das cenas se recobre de um véu irônico.

Tratava-se, para os modernistas mais intransigentes, de uma espécie de desonestidade artística. No fundo, a peça de Wilder tinha objetivos puramente sentimentais e acríticos: "Como é doce a vidinha americana, em que todos nascem, casam, trabalham e morrem...".

Para disfarçar esse conteúdo, continuam os críticos, usou-se de um recurso de vanguarda: a tática do estranhamento brechtiano, com o narrador mostrando que tudo é fragilidade e ilusão.

Seria o equivalente teatral de pintar aquelas ilustrações, tão confortáveis e "integradas", de Norman Rockwell, só que acrescentando uns esfumados, uns desarranjos de perspectiva, para se vender como arte mais sofisticada.

Essa avaliação, carregada de rigor modernista, não resiste à beleza do texto. Trata-se de uma peça "fácil", sem dúvida, na sua capacidade de dizer o que tem a dizer; mas nem por isso barata ou desonesta.

Aí entra Antunes Filho. Em tese, seria o diretor ideal para uma montagem de "Nossa Cidade". Sempre soube emocionar o público, até com alguns toques de sentimentalismo; digamos que tem, como poucos, o dom de suscitar a simpatia pelos personagens de seu espetáculo.

Ao mesmo tempo, usa de vários recursos de estilização: as andanças dos atores de perfil, alguns movimentos em câmara lenta, o uso de atores no fundo do palco como uma espécie de "coro visual" para o que se passa na frente da cena.

Esse tipo de coisa não bastou a Antunes Filho. Ele quis ideologizar a peça: fazer do espetáculo uma espécie de libelo contra os Estados Unidos. Põe os personagens marchando com bandeirinhas americanas (de perfil, é claro), e uma menina empunhando a tocha da Estátua da Liberdade (em câmara lenta, é claro), para dizer que todos aqueles cidadãos de Thornton Wilder não passavam de babacas.

O narrador aparece de cadeira de rodas, como um veterano do Vietnã (só que tirado de algum filme de Hollywood sobre veteranos do Vietnã). A fúria do diretor diante da famosa "hipocrisia americana", para usar um clichê, fica o tempo inteiro lutando contra a humanidade, que não é americana nem brasileira, de personagens que, simplesmente, viviam sua vida sem saber da própria morte. Que tentam voltar à vida, mas só encontram seu funcionamento mecânico, cego, talvez feliz, quando a encaramos da perspectiva do desaparecimento. Thornton Wilder, mais uma vez, deve estar se remexendo na tumba.


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