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Livro narra caça a João Gilberto em tom policial

Em "Ho-ba-la-lá", o jornalista alemão Marc Fischer produz relato apaixonante sobre o inventor da bossa nova

Joao Wainer - 24.abr.09/Folhapress
João Gilberto durante show em São Paulo
João Gilberto durante show em São Paulo

RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

Um jornalista alemão, Marc Fischer, intrigado pela figura de João Gilberto -misto de fascínio pelo artista e de amor e ódio pelo homem que não sai de casa, não se deixa ver e não fala com ninguém, mas hipnotiza as pessoas à distância-, acaba de produzir um livro apaixonante: "Ho-ba-la-lá - À Procura de João Gilberto".

Algum brasileiro escreveria livro igual? Não é o nosso jeito -somos muito solares. Quem mais faria do inventor da bossa nova o personagem de um "roman noir" composto de fatos reais, com especulações (surpreendentemente a propósito) sobre a morte, o destino, a solidão, a fala por silêncios e a sensibilidade para com o invisível?

Quem mais mostraria João Gilberto como um sonhador, um iogue, uma jiboia, um mutilado de guerra, um vampiro ou um homem que, 10 horas por dia, cria obras-primas para as paredes? Um homem onipresente no coração e mente das pessoas que o cercam, muitas das quais não o veem há dez anos -ou nunca o viram. E que representa o perigo -há quem tema se apaixonar ou se deixar escravizar se se aproximar dele.

SAM E EFFIE

O livro é isto: Fischer (1970-2011), violão às costas, quer encontrar João Gilberto para entrevistá-lo e escrever a seu respeito. E, se João Gilberto não quiser falar, ele se contentará com ouvi-lo cantar "Ho-ba-la-lá", sua predileta. Mas João Gilberto é tão volátil, feito de nuvem, que talvez não seja mais de carne e osso, seja só música. Não, ele é de carne e osso: duas ou três pessoas -sua ex-mulher, a cantora Miúcha, seu faz-tudo Otávio Terceiro- o viram ontem ou o verão nesta noite. Só que, tratando-se de quem é, será isto uma prova?

Fischer e sua auxiliar brasileira chamam-se um ao outro de Sherlock e Watson. Mas, na busca por João Gilberto num Rio quase que apenas noturno, agem e falam que nem o detetive Sam Spade e sua secretária Effie Perrine, personagens de Dashiell Hammett em "O Falcão Maltês". Como Spade, ele não despreza pistas. Radiografa uma pessoa assim que a vê, faz perguntas secas, fuma Camel, às vezes bebe além da conta, protagoniza perseguições em táxis e rejeita tentações femininas.

Fischer vai ao apart-hotel do Leblon onde lhe disseram que João Gilberto mora -mas é o apart-hotel errado. Sobe ao mezanino da Toca do Vinicius, onde se guarda a memória da bossa nova. Encontra o homem que alimentou João Gilberto todas as noites por cinco anos e nunca esteve com ele em pessoa. Fischer toma táxis, anda a pé, atravessa túneis. Vai a uma ilha em meio a uma lagoa na Barra, vê-se numa festa de vampiros no Copacabana Palace, encontra a bela mulher de João Gilberto no Parque dos Patins.

BANHEIRO

A narrativa não para, nem quando o autor faz reflexões. Como na sua ida a Diamantina (MG), onde, nos anos 50, João Gilberto, no banheiro da casa da irmã, inventou a batida de violão da bossa nova, tocando, entre outras, "Ho-ba-la-lá".

Fischer penetra na casa (hoje, uma imobiliária), tranca-se no banheiro e conclui que, nos seus humildes 5 metros quadrados, este só comportaria um homem e um violão se o sujeito estivesse sentado no vaso. Testa (com seu próprio "Ho-ba-la-lá") a sonoridade do violão nos ladrilhos e azulejos ("Os canos se lembram de quem lavou as mãos em sua água?"). E admite que os cristais que Otávio Terceiro afirma existirem debaixo da casa podem ter contribuído para a pureza do som de João Gilberto.

DESPERTAR INVEJA

Não vou revelar se Fischer encontra ou não o cantor. Mas o final tem duas passagens de grande força plástica e emocional -aquela em que o celular o acorda e ouve-se "Ho-ba-la-lá" do outro lado da linha, e sua subida à noite na Vista Chinesa, para repetir um ritual de João Gilberto.

Este é um livro para despertar inveja literária em mais de um profissional. O que torna ainda mais chocante saber que, outro dia, uma semana antes de sair a edição alemã de "Ho-ba-la-lá", Marc Fischer, prestes a completar 41 anos, se matou em Berlim. Quando me visitou aqui no Rio, há um ano -camiseta, bermuda, violão, gravador e olhos brilhando ao ouvir gravações de João Gilberto que não conhecia-, nada fazia prever esse desfecho. Mas aquele era Sherlock, não Marc Fischer.

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