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Alô

Artistas redescobrem o telefone e passam a usar o aparelho como suporte para obras sonoras

SILAS MARTÍ DE SÃO PAULO

"Num dos meus sonhos, eu era um monstro horrível, inventado por um cara do mal. Era meu corpo, mas não era eu", diz a voz de um homem. Do outro lado da linha, uma mulher interpreta. "Pode ser o seu corpo querendo dizer alguma coisa que lá no fundo está atormentando você."

É uma conversa telefônica entre dois desconhecidos, conectados às 3h da manhã por um discador automático.

Uma vez por semana, o sistema inventado pelo artista norte-americano Maxwell Hawkins liga ao mesmo tempo para 3.700 pessoas que se cadastraram nos Estados Unidos e no Canadá para serem despertados no meio da noite e discutir seus sonhos e devaneios pelo telefone.

"Tem algo na voz que é muito atraente para mim. E o telefone parece dar acesso ao subconsciente das pessoas. Você tem conversas mais cruas", diz Hawkins. "Sem ver o rosto, dá para sentir a respiração, o ritmo da fala. É como se aquele desconhecido sussurrasse seus segredos mais íntimos no seu ouvido."

Em tempos de mensagens de texto telegráficas e redes sociais ultravelozes, Hawkins, um rapaz de 23 anos, parece estar descobrindo as proezas do aparelho telefônico, inventado no século 19.

Mas o artista deu um salto no tempo ao criar um sistema capaz de identificar o assunto das mais de 300 horas de conversas gravadas. Ele pretende montar programas de rádio com os relatos sobre temas específicos --um banco de dados sonoro e onírico.

"Falar de sonhos dá uma sensação de proximidade e de distância ao mesmo tempo", diz Hawkins. "Quando você está na cama à noite, acordado, preocupado com seus problemas, acha que está sozinho. Mas pode haver milhares de outras pessoas nessa mesma situação."

Também há uma série de artistas contemporâneos que vêm transformando o tom retrô da voz ao telefone em obras sonoras.

Na última Bienal do Mercosul, encerrada em novembro em Porto Alegre, o artista argentino Nicolás Bacal distribuía papeizinhos com um número telefônico --seu trabalho, um longo poema, só poderia ser ouvido.

Em jantares e até na mesa do bar, havia gente que não desgrudava do aparelho por mais de 50 minutos, ouvindo versos gravados pela mulher que, desde os anos 1970, é a voz da hora certa no Brasil.

Bacal encontrou a locutora original do serviço que informa o horário do país e pediu que ela gravasse, no mesmo tom e cadência em que anunciava as horas, uma longa divagação sobre a sensação da passagem do tempo.

"Essa voz sempre esteve associada ao telefone", diz Bacal. "Meu trabalho tem a ver com encontrar um valor agregado na voz, que se transforma num fio condutor poético. Dirigindo a gravação, eu regulava a expressividade dela para que ficasse igual à das horas, com carga humana mínima, que surge só às vezes."

Em tom robótico, ela fala do "cheiro das pedras em abril", das "luzes dos barcos ancorados à beira do mundo", de "um pássaro voando por cabos de fibra ótica", do "tique-taque da voz, correndo paralelo ao café dos bares, ao açúcar dos canaviais, à fúria das máquinas de costura", de "mulheres intranquilas".

Uma dessas mulheres pode muito bem ter sido María Teresa, personagem real que virou celebridade na Argentina quando sua voz, gravada numa fita de secretária eletrônica comprada num mercado de pulgas de Buenos Aires, virou trilha sonora e enredo de um curta-metragem.

No filme, uma atriz é dublada pela voz de María Teresa numa série de telefonemas obsessivos ao marido, indo de um estado de calma fingida ao descontrole total.

"Estou falando sempre com um aparelho. Quando falo com você, estou sozinha", ela apela. "Você foi só ausência, ausência, ausência em toda a minha vida e nunca diz nenhuma palavra de amor."

Essa última frase acabou dando nome a "Ni Una Sola Palabra de Amor", o curta de Javier Rodríguez, que foi visto mais de 1 milhão de vezes no YouTube e detonou uma busca frenética pelos donos das vozes daquela fita.

"Minha ideia era conservar a gravação verdadeira, então fizemos como se faz um desenho animado, que já tem a voz e depois a imagem é criada em cima", diz Rodríguez. "A atriz só teve de aprender o ritmo da fala, a respiração."

MÚSICA DE ESPERA

Esses elementos, quase uma assinatura da voz, também intrigaram tanto o curador Adriano Casanova que ele decidiu montar uma exposição com obras sonoras tocadas no lugar da música de espera nos telefones da galeria Baró, em São Paulo.

"Quando eu ligava para a galeria, ficava irritado com a música de espera", conta Casanova. "Então, tive a ideia de fazer uma mostra que funcionasse só pelo telefone."

Em junho do ano passado, quem ligava para a Baró se deparava com obras de artistas como Dora Longo Bahia, que gravou um estrangeiro lendo uma versão em português de "Ulisses", e Lourival Cuquinha, que interceptou chamadas de orelhões que instalou em Belém e Recife.

Todos os que usavam seus aparelhos podiam ligar de graça para qualquer lugar do mundo, mas tinham de concordar em ter a conversa gravada para virar obra de arte.


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