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Carlos Heitor Cony

Série Essencial

Embora escreva crônicas para jornais há bastante tempo, não costumo abordar temas literários

Organizada por Antônio Carlos Secchin, a Academia Brasileira de Letras está lançando uma coleção de livros uniformizados, muito bem editados, sob a rubrica Série Essencial.

São muitos os volumes, cada qual dedicado a um vulto importante de nossa literatura, incluindo seus membros já mortos e seus respectivos patronos, muitos deles sem quase nenhuma fonte de pesquisa ou informação.

Para aqueles que não se satisfazem com os dados fornecidos pelo Google, alguns deles completamente furados, a série, que é assinada por escritores em atividade, traz um ensaio sobre o autor, sua biografia, a relação de suas obras e uma antologia de seus melhores trechos ou poemas.

Falei no Google aí em cima e já entrei pelo cano por confiar estupidamente em suas informações. Cito apenas meu caso: nas páginas que se referem a mim, há erros lastimáveis, até mesmo um livro que nunca escrevi, "Cadernos do Fundo do Abismo".

Volta e meia, recebo cópia de algum trabalho feito por alunos e estudantes que estão fazendo mestrado ou doutorado, em alguns deles consta um livro que não existe e, querendo Deus ou o diabo, nunca existirá.

Evidente que na série em questão muitos autores possuem fortunas críticas abundantes, biografias excelentes, como a de Machado de Assis, Joaquim Nabuco, João do Rio, Euclides da Cunha, João Cabral de Melo Neto, José do Patrocínio, Gonçalves Dias, Gregório de Matos e outros.

Mas a maioria dos nomes que compõem a Série Essencial tem escassa literatura crítica e mesmo biográfica. É o caso de Antônio José da Silva, o Judeu, sacrificado pela Inquisição; e Ribeiro Couto, poeta a quem se deve a definição do brasileiro como o "homem cordial", expressão que erroneamente é atribuída a Sérgio Buarque de Holanda, que apenas desenvolveu o mesmo conceito no capítulo 5 de seu hoje clássico "Raízes do Brasil".

Excelente o volume dedicado a Graça Aranha, do qual a maioria dos entendidos salienta apenas a escandalosa briga com Coelho Neto a respeito do modernismo. Sua obra principal é "Canaã", muito citada, mas pouco lida. O bate-boca entre os dois escritores por pouco não chegou à luta corporal no próprio recinto da Academia. Prevaleceu a turma do deixa-disso.

Outro nome de destaque, hoje inteiramente submerso no mercado editorial e nas academias, é Domício da Gama, mais famoso como embaixador e ministro, protegido escancaradamente na carreira diplomática pelo barão do Rio Branco.

Foi o terceiro presidente da ABL, sucedendo a Rui Barbosa, que por sinal sucedeu a Machado de Assis.

Excelentes também os textos de Ferreira Gullar sobre Gonçalves Dias; sobre Afonso Arinos, com texto de Afonso Arinos Filho; sobre Rachel de Queiroz, texto de José Murilo de Carvalho; sobre Peregrino Júnior, texto de Arnaldo Niskier, destacando-se também o estudo de Alfredo Bosi sobre Machado de Assis.

A Série Essencial prosseguirá no mesmo ritmo e com a mesma qualidade, dando relativa preferência aos autores do passado que raramente entram no catálogo de nossas editoras.

Embora escreva crônicas para jornais ou revistas há bastante tempo, não costumo abordar temas literários. Eventualmente comento um livro ou um autor, mas em 60 anos de ofício são raros os textos sobre o assunto.

Faço este registro da Série Essencial da ABL para ter o pretexto de transcrever um pequeno poema de Ribeiro Couto, que há anos mantenho sob o vidro da minha mesa de trabalho:

"Cais Matutino"

"Mercado do peixe, mercado da aurora: cantigas, apelos, pregões e risadas à proa dos barcos que chegam de fora./ Cordames e redes dormindo no fundo; à popa estendidas, as velas molhadas; foi noite de chuva nos mares do mundo./ Pureza do largo, pureza da aurora, há viscos de sangue no solo da feira, se eu tivesse um barco, partiria agora./ O longe que aspiro no vento salgado tem gosto de um corpo que cintila e cheira para mim sozinho, num mar ignorado."

Quando estou triste, muito triste mesmo, e descrente de quase tudo, leio com renovada atenção este pequeno poema, apesar de sabê-lo de cor.

AMANHÃ NA ILUSTRADA: Drauzio Varella

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