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Mônica Bergamo

Dois em um

Juntos há 50 anos, Lélia e Sebastião Salgado viraram parceiros também na arte, em arranjo no qual ela ajuda a conceber e a viabilizar os projetos do fotógrafo brasileiro mais renomado no mundo

Experimente perguntar a Lélia Salgado se ela é mulher do fotógrafo Sebastião Salgado. "Ele que é meu marido", será a resposta. "Ninguém pergunta ao Tião se ele é meu marido", diz ao repórter Morris Kachani.

Juntos há 50 anos, Sebastião e Lélia formam uma bem-sucedida parceria no exclusivo universo da fotografia autoral. A ponto de até mesmo o consagrado fotógrafo de guerra James Nachtwey declarar: "Eu também queria ter uma Lélia para mim".

Sobre ela, diz o companheiro: "A gente é sócio na vida. Não é a mulher que está por trás, é a mulher que está ao lado". E acrescenta: "Falar dela é que nem falar de mim. Não sei onde eu começo e a Lélia acaba".

É difícil definir o trabalho que a capixaba de 66 anos, signo de leão com ascendente em leão, formada em arquitetura e urbanismo em Paris, desenvolve. Curadora certamente ela é. Junto com o marido, 70 (aquário com touro), ela concebe os projetos e procura viabilizá-los. Também seleciona imagens, coordena a produção das viagens, a edição dos livros, a montagem das exposições e a produção de fotos para colecionadores, vendidas ao preço médio de US$ 40 mil.

Tudo a partir do escritório da Amazonas Images, em Paris, que conta com sete funcionários e um laboratório digital, além dos arquivos.

Lélia ainda participa de algumas expedições. "Tem que ir ver, sentir o cheiro." No monumental projeto "Gênesis" foi a Galápagos, Papua Nova Guiné, Indonésia, Uganda e Patagônia. E caminhou 350 km pelas montanhas da Etiópia. "Nas viagens não pode ter frescura. Tem que topar dormir em qualquer lugar, tomar banho no rio ou simplesmente não tomar banho."

O custo das viagens varia de 60 a 100 mil euros. A logística envolve a montagem de caravanas com cozinheiros e assistentes, e vários jegues, como na Etiópia. Ou 40 dias em barco alugado, sem sair dele, no caso da Antártida.

"O Tião é quem vai fotografar. Mas eu que sei aonde ele tem que ir", resume ela, em meio à montagem de "Gênesis", dentro do FestFoto de Porto Alegre, na última quarta, a um dia da abertura da exposição. Com um vigor físico notável ("a gente só não pode envelhecer na cabeça"), Lélia observava a evolução dos trabalhos, de fita métrica à mão.

Os textos das legendas ainda não haviam chegado. Uma parede havia sido pintada em um cinza em tom mais claro do que o escolhido, e recebia uma camada com a tinta originalmente solicitada.

Coisas que só acontecem por aqui, ela diria mais tarde, quando instada a falar sobre a pátria: "O Brasil é uma doideira. Ao mesmo tempo que tem cabeças hipermodernas, é tão arcaico, com coisas que não funcionam direito". E emendou: "Achei os protestos de junho geniais. Tem muita coisa que deixou de ser feita aqui em 500 anos".

Desde abril de 2013, "Gênesis" rodou por 11 cidades pelo mundo e foi vista por 1,3 milhão de pessoas. Foram feitas cinco reproduções das imagens, ou seja, há cinco mostras itinerantes rodando pelos continentes. Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Cingapura, Seul, Estocolmo, Barcelona, Milão e Nova York receberão a exposição este ano.

É resultado de 12 anos de dedicação quase exclusiva do casal e 32 viagens. A ideia da empreitada foi retratar a paisagem e a vida nos lugares mais intocados do planeta.

"Antigamente falávamos com a humanidade", diz Lélia, referindo-se a trabalhos engajados como "Êxodos", sobre migrações em massa, ou "Trabalhadores". "Hoje não mais. Falamos com o planeta. Compreendi que não é a espécie humana que deve comandar o planeta. A gente vai muito mal", diz Lélia, que se define militante ecológica.

Ela preside o Instituto Terra, criado pelo casal para reflorestar a mata atlântica na região do Vale do Rio Doce, em Minas, onde Salgado nasceu. Completamente degradada, a fazenda da família, de 700 hectares, recebeu 2 milhões de mudas de árvores em 15 anos. As nascentes foram recuperadas. Para se ter uma ideia, a Floresta da Tijuca, no Rio, recebeu 190 mil mudas quando foi reflorestada, no século 19.

A Vale foi uma das principais parceiras dos Salgado. "É uma mineradora que faz muito estrago. Mas o ser humano precisa de minério para viver. Se você faz uma cruz em cima da empresa, não está ajudando a melhorar. Tem que mudar de dentro", diz ela. Recentemente, o casal esteve com a presidente Dilma Rousseff para apresentar um projeto de revitalização do rio Doce: "Ela adorou. É difícil ser governo. Não desgosto de sua gestão".

Estudiosa da história da fotografia, Lélia editou o livro de fotos do mestre francês Cartier-Bresson na Índia, em parceria com o próprio, e dirigiu a galeria da célebre agência Magnum por quatro anos. "Aquele não é um lugar muito bom de trabalhar, tem muito ego inflado." Para ela, a transição tecnológica da fotografia só melhorou as coisas: "O digital te dá mais possibilidades. Quantas fotos o Tião não perdeu por causa da luz e do filme que estava usando".

O casal mora em Paris desde 1969 e tem dois filhos. Juliano, 40, acaba de finalizar um filme sobre o pai, dirigido em parceria com o cineasta alemão Wim Wenders, de "Pina" e "Buena Vista Social Club". Rodrigo, 34, que tem síndrome de Down. Lélia e Sebastião apontam o nascimento do caçula como ponto de mutação em suas vidas.

Sebastião conta que o casal é festeiro, adora receber amigos e dançar. E que Lélia cozinha muito bem, a ponto de um amigo dizer que sua casa é o melhor restaurante de Paris. Leem bastante: as obras completas de Guimarães Rosa, Machado de Assis, García Márquez.

Quanto ao casamento, ele diz: "A gente deu sorte de se dar bem na cama e na vida. Como qualquer casal, temos nossas diferenças, claro. Já quase separamos. Tudo é conversado, a gente vai até o atrito e resolve". Tão logo se conheceram --ele trabalhava no administrativo da Aliança Francesa em Vitória (ES) e Lélia era aluna--, começaram a namorar. Em um ano, tinham conta conjunta no banco.

Lélia brinca: "E tem outro segredo, ele viaja bastante". "Não consigo ficar muito tempo sem viajar", diz ele. "Começo a ficar irritado. Minha liberdade é como a de um cavalo correndo livre. E, quando volto, o prazer é enorme." E conclui: "Lélia não é uma pessoa que corre riscos. Eu corro mais. Ela garante a estrutura de nossa tribo". A "cacique" diz: "A vida não é uma coisa que você traça, ela muda todo dia. É preciso ter cabeça e estar aberta a isso".

Enquanto você lê este texto, ele estará a caminho de uma expedição ao pico da Neblina, com xamãs da tribo ianomâmi. Lélia embarcou no sábado para Paris.


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