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Contardo Calligaris

As crianças e o sexo

Acabou: os pais não têm condição de limitar o acesso de seus filhos a qualquer tipo de informação sexual

Podemos nos resignar. Neste começo do século 21, em qualquer sociedade mediamente modernizada, nenhum pai tem condição de vigiar, selecionar e limitar o acesso à informação de seus filhos.

Isso vale especialmente em matéria de sexualidade. A oferta é gigantesca --30% do tráfico de dados é pornografia, 25% das procuras na internet são sobre um tema sexual, os sites de pornografia recebem mais visitas que Netflix, Amazon e Twitter todos juntos. Essa oferta encontra inevitavelmente as maiores curiosidades infantis --desde "de onde vêm as crianças?" até a "como será que gozam os adultos?".

Nenhum pai proibirá totalmente o uso da internet, por medo (justificado) de isolar seus filhos. A rigor, aliás, essa posição implicaria a decisão de educar os filhos em casa, sem escola.

Alguns pais, na fronteira entre o otimismo e a ingenuidade, monitoram os filhos (com razão) graças a programas espiões, que registram as andanças pela internet, ou confiam em filtros, que impedem o acesso a sites "para adultos". No melhor dos casos, eles conseguem preservar o sono de seus filhos, que não terão interesse em navegar noite adentro embaixo dos cobertores. Mas, no dia seguinte, eles estarão navegando no computador do amigo, ou num smartphone emprestado.

Mais ou menos um século atrás (a primeira edição de "Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade", de Freud, é de 1905), começamos a admitir que as crianças, mesmo pequenas, tinham "interesses" (digamos assim) sexuais precoces.

Desde então, durante seis ou sete décadas, parece que nossa maior preocupação pedagógica em matéria de sexualidade foi a seguinte: o que vamos dizer e mostrar às crianças, quando e em que ordem, para que elas domestiquem e organizem seus interesses sexuais (confusos, parciais e, por que não, "errados") de forma a elas chegarem a transar como "gente grande" (isso na hora da "maturidade" sexual)?

Claro, o problema é: como transa a gente grande? E qual deveria ser a finalidade de uma educação sexual?

Deveria ser interna ao sexo, ou seja, por exemplo, a de permitir que as crianças tivessem um dia o sexo mais prazeroso possível? Ou deveria ser um aprendizado de renúncias, escolhendo menos prazer em troca de, sei lá, mais harmonia entre parceiros? Ou o fim deveria ser simplesmente a obediência aos costumes sociais dominantes?

Seja como for, prevaleceu e ficou a ideia de que o fim e suprassumo de uma boa educação sexual seriam a copulação entre um homem e uma mulher (quem sabe, casados e com a procriação como alvo).

A própria psicanálise participou dessa empreitada "educativa". Muitos psicanalistas acharam que as criancinhas gostam de morder e chupar, mas nós, gente grande, aprendemos a desejar sem querer devorar nosso objeto; ou, então, que as criancinhas se excitam com brincadeiras de cocô (a analidade tem a ver com sadismo, essa é outra história), mas nós, gente grande, aprendemos a desejar sem querer dominar ou ser dominado (não é?). A lista continua das coisas que as criancinhas fazem e nós não fazemos e lhes ensinaremos a não fazer. No fim dessa lista utópica vem o melhor: ensinaremos às crianças a sentir, ao mesmo tempo e para a mesma pessoa, desejo sexual e sentimentos ternos e amorosos.

Esse projeto pedagógico nunca funcionou bem, mas, durante décadas, ele inspirou nossos esforços de "educação sexual".

De fato, o projeto de educação sexual das crianças serviu sobretudo para os adultos. Ou seja, usamos as crianças para tentar educar nossos próprios desejos confusos e erráticos (se não "errados") e para tentar juntar, em nós, amor e sexo.

Mas o que importa é que, agora, esse projeto pedagógico (das crianças ou de nós mesmos) acabou: a internet o sepultou de vez. Por quê? Mas porque qualquer um descobre em dois cliques que os adultos gozam exatamente com todas aquelas tendências supostamente infantis, que eles tentavam levar as crianças a esquecer e, por assim dizer, a juntar num amor-sexo ideal, fundação da família.

Ou seja, hoje, as crianças não só sabem que seus desejos não são restos infantis aos quais eles deveriam renunciar para crescer, mas que eles são o tecido mesmo do desejo dos adultos. Elas também sabem que os adultos, quando lhes falam de sexo, quase sempre, estão mentindo.

Isso é bom ou é ruim? E, sobretudo, bom ou ruim para o quê?


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