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Mônica Bergamo

Deu a louca no Chile

Até 70 mil chilenos podem vir ao Brasil na Copa; 4.000 deles viajam numa caravana de carros, motos e motorhomes, em fila indiana, e muitos dizem ter esperado a vida toda pela chance de ir a um Mundial

Se 55% dos brasileiros estão contrariados com a Copa do Mundo, milhares de chilenos já se preparam para invadir o país na próxima semana. De acordo com o governo e com associações de futebol do Chile, 50 mil torcedores devem chegar ao Brasil em junho --ou até 70 mil, caso "La Roja", como é conhecida a seleção do país, passe da primeira fase da competição.

Os chilenos conseguiram até organizar, segundo as informações disponíveis, a maior caravana de carros que chegará ao Brasil de uma só vez. "Te Seguimos Donde Vayas" (em português, "te seguimos [a seleção] aonde vá") é o lema da Caravana Santiago-Brasil 2014.

Mais de 800 carros cadastrados, com cerca de 4.000 torcedores, partem de todos os cantos do Chile no dia 7 para subir a cordilheira dos Andes, em fila indiana. Em motorhomes, caminhonetes, ônibus, vans e kombis, reforçados com correntes nos pneus para vencer a neve, juntam-se e seguem rumo ao Brasil. Vão passar por nove cidades --entre elas, Cuiabá, Rio e São Paulo, onde a "La Roja" vai jogar--, percorrendo 6.352 km só na ida. Pelos cálculos de diplomatas, se todos chegarem ao mesmo tempo, o último veículo da fila só passará pelo primeiro ponto de fronteira oito horas depois.

No domingo passado, boa parte dos integrantes da caravana se reuniu no parque La Reina, em Santiago, para o último encontro antes da viagem. O governo enviou funcionários dos ministérios da Saúde, das Relações Exteriores e da Segurança para orientar os "hinchas" (torcedores).

Juan Aguirre, 46, veio da cidade de La Serena, a 400 km de Santiago. "No verão, falei para os amigos: vamos fazer uma loucura. Vamos para o Brasil!" A adesão foi imediata. Oito viajantes fizeram vaquinha de US$ 40 mil e compraram um motorhome, com duas camas de casal, duas de solteiro e bancos que reclinam para dormir. Na volta, vão colocar o veículo à venda.

Juan diz que, jovem, corria o Chile com amigos. Quando soube que a Copa seria na América do Sul, "o bichinho da aventura despertou de novo". Como quase todos os torcedores da caravana, eles só têm entrada para o primeiro jogo do Chile, contra a Austrália, em Cuiabá. Se não conseguirem para os outros dois, contra a Holanda, em SP, e a Espanha, no Rio, vão ver no meio da rua mesmo, em qualquer televisão.

Ouviram falar das manifestações. "Protesto tem em todos os lados", diz Juan. Violência urbana? "A TV só mostra isso para vender mais. Quando chegarmos lá, tudo vai girar em torno da bola."

O técnico de eletricidade Edgardo Araya, 35, e a mulher, Soledad Carrera, 33, também juntaram dinheiro por meses. Como o salário dele não era suficiente para uma poupança, o casal passou a viajar à Argentina para comprar cigarros e vender mais caro no Chile. Juntaram US$ 4.000. E pegaram mais US$ 8.000 emprestados em um banco. Compraram um furgão e se incorporaram à caravana, com os filhos Isidora, 5, e Tomás, 11 --que vai perder as provas do colégio.

Alberto Schmidt, 34, mentor e líder da caravana, dava entrevistas para repórteres chilenos no parque. "É uma ideia louca, mas sempre fui um pouco louco", repetia. Até o cônsul do Chile no Rio disse que achava a viagem uma maluquice. "Somos uma caravana familiar, não temos patrocinador nos respaldando."

A poucos metros, sua mulher, Paulina Tanaka, 32, distribuía os adesivos com números que vão identificar os carros do grupo e os cartões que dão acesso a campings em Cuiabá, Nova Iguaçu (RJ) e Americana (SP). Locais que Alberto, em três viagens ao Brasil, reservou para receber a caravana. "Não é doideira, estamos ajudando a organizar. O chileno é louco, chega e coloca a sua barraca na primeira praça que vê", dizia ela.

Acostumados a viajar de mochila nas costas, os dois decidiram vir ao Mundial. Como "a TV sempre mostra o Brasil como um país inseguro", lançaram uma página no Facebook, em outubro, para juntar "uns dez carros" para a viagem. A ideia se espalhou. No primeiro encontro que organizaram, apareceram 800 pessoas. No segundo, 1.200.

Ricardo Jara, 33, e Antonio Fuenzal, 40, são empregados de exportadoras de frutas na cidade de Curicó, a 200 km ao sul de Santiago. Eles estavam entre os que, antes de saber da caravana, viriam ao Brasil "de mochila, para acampar" ou até "dormir no carro mesmo", diz Fuenzal.

O difícil, afirma ele, foi convencer a mulher, Patrícia, a "liberá-lo". "Mas era agora ou nunca. Li numa reportagem que vai demorar 30 anos para termos outro mundial na América do Sul." Viajar a outros continentes para uma Copa seria privilégio de poucos. "É a oportunidade que a maioria dos chilenos tem de ir por terra, gastando US$ 500 ao todo. E só o avião para a Europa custa US$ 800", diz o taxista Ricardo Bravo, que viajará com oito amigos.

O técnico químico Arturo Martinez, 59, radicalizou: pediu demissão porque não conseguiu dispensa do trabalho nos dias da Copa. "Eu nunca mais vou ter essa chance. É o coroamento de 50 anos de uma vida de torcedor." Numa cadeira de rodas, ele não sabia nem sequer onde dormiria no Brasil. Só tinha uma certeza: vai conhecer Ipanema, no Rio. E "tirar foto com as meninas lindas de lá".

O estudante Michel Díaz, 22, trancou matrícula no curso de engenharia mecânica. "O Mundial é algo único", dizia ele sob o olhar de aprovação do pai, Juan Carlos Díaz, 48, que levará ainda ao Brasil o filho Brian Díaz, 24, e o sobrinho Fabian Robles, 16. Para a câmera, eles repetem o slogan dos estudantes chilenos que vão à Copa: "Chao, profe". Tchau, professor.

No fim de tarde, o grito de guerra dos "hinchas" ecoa pelo parque, puxado pelo psicólogo Rodrigo Pina, 32, e os seis amigos que fizeram vaquinha de US$ 14 mil para comprar uma van que vão revender depois que voltarem do Brasil. "Chi-chi-chi-le-le-le, viva Chile!" O grupo celebrará a amizade de mais de 20 anos realizando "o maior sonho das nossas vidas, que é ver um Mundial", diz Rodrigo. Cinco deles estarão saindo do país pela primeira vez.

"Muitos na caravana nunca viajaram ao exterior", confirma Alberto Schmidt. É o caso do carpinteiro Miguel Rubio, 46, que pintou de vermelho a casa de alumínio instalada sobre a caminhonete que herdou do pai. "Vai ser maravilhoso conhecer o Brasil, o mar, as praias de nudistas!"

Megafone vermelho na mão, Alberto dá aos "loucos da caravana", como ficaram conhecidos, as últimas orientações: os brasileiros tratam a todos muito bem. O país não é tão inseguro. Mas andar com celular à vista é pedir para ser roubado. Bêbado, à noite, também. Jogar cigarro na rua pode render multa de R$ 170. É bom levar repelentes de insetos. Em muitos lugares é difícil encontrar rede wi-fi.

"Alberto, e se formos campeões, onde vamos comemorar?", pergunta um torcedor. Vários "hinchas" respondem: em Copacabana, "por supuesto". Juan Aguirre vai além. "Quando vencermos o Brasil, será o segundo Maracanazo' [quando o Uruguai foi campeão, em 1950]! Vamos ter que colocar a camiseta amarela sobre a chilena. Ou não vamos sair vivos do país."


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