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Crítica novela

Narrador traiçoeiro conduz prosa de Nabokov

Obra de juventude, 'O Olho' já traz elementos distintivos do mestre russo, como humor torto e imagens precisas

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Olho" é uma novelinha de Vladimir Nabokov (1899-1977) escrita nos anos 1930 e traduzida para o inglês pelo próprio e por seu filho Dimitri em 1965.

Embora seja obra de juventude, todas as idiossincrasias do mestre russo, naturalizado americano, já se fazem presentes: o humor torto, a linguagem a meio passo da pompa e as imagens tão precisas quanto surpreendentes.

De qualquer modo, torna-se difícil identificar, a partir das traduções realizadas com Dimitri nos EUA, o real parentesco que essa produção inicial de Nabokov possa ter com os textos originais.

À la Witold Gombrowicz, para efeito comparativo, cujo "Ferdydurke" em espanhol pouco tinha a ver com a matriz polaca, não é impossível que tais livros não passem de reinvenções tardias.

O narrador do livro é um rapaz pertencente à sociedade de "emigrés" russos na Berlim dos anos 20. Com sérios problemas de autoafirmação, Smurov torna-se preceptor dos filhos de uma família abastada de São Petersburgo que ainda mantém o estilo de vida natal em pleno exílio. Meio neurótico, o jovem alimenta um caso amoroso com Matilda, amiga dos burgueses e mulher casada.

Humilhado em frente aos alunos pelo marido que tudo descobre, Smurov não vê outra saída senão o suicídio.

Ao atentar contra a própria vida, ocorre um curioso giro narrativo que deixa tudo mais nebuloso. Sem saber se o suicídio foi logrado ou não, ao leitor é dado ler a história de fora, em terceira pessoa.

Assim, a partir daí, acompanham-se as tentativas de Smurov (na primeira parte, em primeira pessoa, o narrador não era nomeado) de se aproximar de outra família de russos, num endereço distinto, com outras intenções.

AMBIGUIDADE

Esse deslocamento identitário aos poucos evolui de maneira a sugerir que Smurov e o narrador inicial sejam a mesma pessoa. Mas pode ser que não sejam, pois Nabokov prefere a ambiguidade ao esclarecimento, o que atribui um estranho caráter de mistério ao livro.

Sem saber às claras do que se trata, resta apreciar os vacilos atormentados de um personagem em dúvida diante do próprio papel: anseia ser Don Juan, ao mesmo tempo em que se sente atraído e minimizado por homens; mantém um complexo de inferioridade em relação à burguesia e ao mesmo tempo se comporta como um arrivista inconsequente; busca seduzir mulheres, mas as enxerga como um misógino.

O olho vago de Smurov passeia pelos cenários de Berlim como uma câmera delatora. Sob o jugo desse narrador pouco fiável e muitíssimo desconfiado, resta ao leitor admirar a prosa de Vladimir Nabokov, tão compacta em "O Olho" que se aproxima da melhor poesia.

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O OLHO

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