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Michel Laub

Poesia e dicionários

Os atuais dicionários se guiam pela ideia de objetividade, mas é inegável que há perda de sabor

Num ensaio sobre o "Grande Diccionário Portuguez", publicado em 1874 por Frei Domingos Vieira, o também grande Sérgio Augusto de Andrade afirma: "Em nenhum momento [o autor] simula indiferença diante da língua (...). Cada palavra representa um desafio, um compromisso, uma questão de honra, uma sinfonia e o projeto de uma estética."

Algo parecido dá para dizer do "Partido das Coisas", de Francis Ponge, escrito em 1942 e editado no Brasil pela Iluminuras. Em forma de verbetes, ou mini-ensaios que evocam as características de objetos, pessoas, animais, plantas, lugares e elementos da natureza, o autor francês mistura o que daria para chamar de rigor léxico com a exuberância de sua sensibilidade.

Um exemplo é este trecho sobre a semente da laranja (tradução de Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson): "É nela que se encontram, após a explosão sensacional da lanterna veneziana de sabores, cores e perfumes que constitui o próprio balão frutado, a dureza relativa e o verdor (aliás, não inteiramente insípido) da madeira, do galho, da folha: em suma, pequena, embora com certeza a razão de ser da fruta."

Carlos Drummond de Andrade falou das palavras em "estado de dicionário", à espera de serem transformadas em poesia. O triunfo de "O Partido das Coisas" é tornar porosa a fronteira que imaginamos separar os dois registros. O livro traz incontáveis experiências sensoriais ao leitor, num tensionamento de linguagem típico dos grandes versos.

Ao mesmo tempo, não deixamos de entender --se desconhecermos o significado do termo a identificá-los-- o que são a maioria daqueles objetos no mundo físico. Há precisão descritiva no texto, e não apenas retórica, metáfora ou lirismo. Seria possível substituir algumas das definições do Houaiss, digamos, por algumas de Ponge, sem maiores perdas.

(Pelo contrário, só temos a ganhar em casos como o da primeira versão de "semente" oferecida por aquele que é considerado o mais completo dicionário brasileiro: "Estrutura formada a partir do óvulo fecundado das plantas angiospermas e gimnospermas e que ger. consiste em um ou mais tegumentos que envolvem o embrião e o material nutritivo para o seu desenvolvimento em plântula.")

Como crias do nosso tempo, que herdou e cultiva o método científico de ver (e portanto nomear) as coisas, os atuais dicionários se guiam pela ideia de objetividade. Faz sentido, pois a vida prática gosta das definições claras e úteis. Desconfiamos da ambivalência personalista ou ideológica de certos adjetivos e advérbios. É inegável, porém, que há perda de sabor no processo.

Seria mais literário, no mínimo, se nossos amansa burros incorporassem parte do apregoado por Sérgio Augusto de Andrade: não se limitar a um "arquivo morto de significados", estabelecendo um "museu imaginário de simpatias, tanto pelas coisas quanto pelas palavras."

Com menos ironia que Ponge, mas elegância e doçura antigas que podem --como tudo que é antigo na língua-- soar igualmente poéticas, é o que faz o Frei Vieira nas melhores passagens dos cinco volumes de sua obra. Para ele, o céu é o espaço "estendido por cima de nossas cabeças". Os buracos no miolo do pão são "alma de padeira". O vento que "entra nas casas por uma pequena fresta" é "ar coado".

Já a banana "serve de alimento agradável em todas as regiões subtropicais". A cobra verde "só faz mal a quem a maltrata". Ternura é uma "brandura maviosa". Acalanto, uma "formosa, suave e meiga palavra, que já em si exprime o canto e carinho maternal ao ritmo do qual se embalam as crianças, para suspender-lhes o choro, com o sono."

Ao final, e cada um em seu gênero, a seu modo e com seus objetivos, tanto o "Grande Diccionário" quanto "O Partido das Coisas" colorem a realidade e nos fazem vê-la de forma diversa da que estamos acostumados. Sérgio Augusto de Andrade diz que "ser bilíngue na mesma língua é mais difícil que dominar várias outras", pois é algo que envolve não só empenho, mas também a invenção.

Ao menos neste caso, e dado o que os dois autores fazem com o próprio e respectivo idioma, tendo a concordar.


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