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Crítica contos O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo Nobel japonês subverte o real em narrativas Em histórias escritas de 1957 a 1990, Kenzaburo Oe usa a realidade como referência inevitável, mas terrível NOEMI JAFFECOLABORAÇÃO PARA A FOLHA No discurso de recebimento do Prêmio Nobel de 1994, o japonês Kenzaburo Oe se refere ao "sistema de imagens do realismo grotesco (...), a correspondência entre os elementos cósmicos, sociais e físicos, a sobreposição da morte e das paixões pelo renascimento e a risada, que subverte as relações hierárquicas". Em um país que é praticamente determinado pelas relações hierárquicas e no qual até um simples "bom dia" revela a posição social do falante, subvertê-las é mais do que nós, leitores ocidentais, podemos imaginar. Os "14 Contos de Kenzaburo Oe", seleção feita pelo tradutor Leiko Gotoda de narrativas curtas escritas entre 1957 e 1990, mostram, desde o momento imediatamente posterior ao final da guerra até a época mais recente, personagens "miseráveis em sua humanidade". Os indefesos são miseráveis porque perseguidos e oprimidos impiedosamente pela hipocrisia dos valentes; os resignados são miseráveis porque se omitem diante de tudo; e os fortes são miseráveis porque conquistam a força à custa de mentiras. KAFKA É uma atmosfera que em muito lembra Kafka (uma jiboia com diarreia, um garoto adorado por pássaros, habitantes que fogem inexplicavelmente de um vilarejo nas montanhas), mas que se aproxima mais -pela coloquialidade da linguagem- do mundo conhecido. Nesse contexto, as histórias criam um mundo pararreal em que praticamente não sobra pedra sobre pedra. A própria palavra "real" aparece em praticamente todos os contos, como referência inevitável, mas terrível: "A realidade não possui nem a gentileza nem a delicadeza dos pássaros"; "cresceu em si a impressão de ser um órfão banido do mundo real"; "e assim fui abandonado sozinho no mundo real"; "ela fecha a porta e encerra uma faceta real de sua vida". Sem abrir mão das características usualmente associadas à literatura e à cultura japonesas, como a economia, a elipse e o escrúpulo, essa escrita, vinda de um autor nascido no interior profundo do Japão, se aproxima muito do Ocidente. Isso acontece nas referências a Sade, Henry Miller e Descartes, e no fluxo de consciência sem freios de muitos personagens, cujo maior fardo é a autoconsciência. Como se não fosse suficiente ter sido vítima de bombas atômicas, de um império de faz de conta e da dificuldade de se expressar, esse Japão de Kenzaburo Oe também é vítima da consciência de si, talvez o inimigo mais difícil de enfrentar. Mesmo assim, sempre sobram nesses contos as risadas sinceras e as desesperadas. Estas últimas, ainda mais perversas do que a autoconsciência. - Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros |
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