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Aleksandr Sokurov filma busca pelo poder

Russo convenceu o primeiro-ministro Vladimir Putin a financiar "Fausto", que venceu o Festival de Veneza de 2011

Após retratar Hitler, Lênin e Hirohito, cineasta encerra tetralogia com uma adaptação de Goethe

STEVE ROSE
DO “GUARDIAN”

Ao final de uma conversa desafiadora que testa minhas capacidades intelectuais ao máximo, mas mal movimenta as dele, Aleksandr Sokurov faz uma declaração assombrosa: "Sou uma pessoa muito literária, não tanto uma pessoa cinematográfica. Não gosto muito de cinema, na realidade".

Como assim? Ele não gosta muito de cinema?

Sokurov é um homem que foi perseguido pelos comunistas por seus filmes; é o homem que nos deu um longa-metragem milagroso filmado em uma única tomada ininterrupta, "Arca Russa", de 2002; o homem que é guardião do grande legado cinematográfico da Rússia.

O que ele teria realizado se gostasse de fato de cinema? Sua carreira inteira é dominada por sua "tetralogia do poder", uma "magnum opus" concebida em 1980 e completada apenas este ano.

Os três primeiros filmes trataram de líderes do século 20 ­-Hitler em "Moloch", de 1999, Lênin em "Taurus", de 2001, e o imperador Hirohito em "O Sol", de 2005- flagrando-os em situações domésticas isoladas, quase abstratas.

O filme final, uma adaptação solta de "Fausto", de Goethe, é quase totalmente diferente dos três primeiros.

FAUSTO

"Fausto" é um filme de época alucinatório, apinhado de confusão, palavras, carnalidade e as imagens inesquecíveis de costume.

Na tomada de abertura, a câmera desce dos céus, atravessa uma paisagem montanhosa e chega a um vilarejo de aparência medieval, indo então deter-se sobre a genitália de um cadáver do qual nosso doutor Fausto está retirando os órgãos, à procura da alma humana.

Memorável mas espinhoso, o filme recebeu o prêmio máximo no festival de cinema de Veneza deste ano. "São todos temas muito sérios e carregados de significado", diz Sokurov.

"Basicamente, é como um romance grande, e romances levam muito tempo. Goethe levou pelo menos 40 anos para escrever 'Fausto'."

Por que fazer três filmes sobre sujeitos históricos e então um sobre um sujeito fictício?

"O que você pensa?"

Sugiro que "Fausto" seja uma espécie de prólogo aos outros três filmes. "Talvez", ele concorda.

Ou a questão talvez seja que os três primeiros tratam da morte do poder, enquanto "Fausto" fala de como o poder é adquirido?

"Mas ele nunca chega a conseguir esse poder", diz. "É impossível possuir esse poder, porque ele não existe de fato. Existe apenas na medida em que as pessoas se dispõem a submeter-se a ele. O poder não é material."

PUTIN

Nascido no sudeste da Sibéria, Sokurov habitou, em sua infância, partes diferentes do império soviético, com sua família militar, antes de matricular-se na prestigiosa escola VGIK de cinema de Moscou.

Os filmes que fez como estudante foram criticados por exibir "formalismo e visões antissoviéticas", mas seu longa de estreia, "The Lonely Voice of Man" (1978), foi bem recebido pelo grande Andrei Tarkóvski (1932-1986), que o ajudou a encontrar trabalho.

Ironicamente, Sokurov tem mais dificuldade em fazer filmes no mercado livre de hoje do que tinha na era soviética. Essa é a outra razão pela qual sua tetralogia levou tanto tempo.

Ele estava preparando "Fausto", seu filme mais caro, justamente quando a recessão econômica chegou. Não conseguia encontrar financiamento.

Foi quando entrou em cena um salvador inesperado: Vladimir Putin. Sokurov encontrou Putin na residência de campo do primeiro-ministro russo.

"Eu disse a ele que, se não tivesse essa oportunidade de fazer esse filme, ele nunca seria feito. Alguns dias depois me informaram que o valor de que eu precisava seria autorizado. Como e por que aconteceu, eu não sei. Talvez porque Putin tenha uma ideia muito clara da cultura e história alemãs. Não creio que tenha sido por minha causa. Nunca demonstrei lealdade ao partido dele."

Sua ligação com Putin o compromete? "Quando o encontrei recentemente, ele perguntou se eu ia dublar 'Fausto' para o russo. Lendo nas entrelinhas, seria possível enxergar a pergunta como uma espécie de ordem. Mas eu não tive medo de lhe dizer 'não'."

"O dinheiro destinado por ele era do Estado, não dele próprio. Não sei se ele próprio tem dinheiro. De acordo com seu salário oficial, não deve ter dinheiro. Só posso ser responsável perante meu público, nada mais."

"Dickens, Flaubert, Zola, esse é meu mundo. Foi o que me criou." É nesse contexto que ele declara que não gosta muito do cinema.

Tampouco -não obstante as comparações sempre traçadas- se enxerga como sucessor de Tarkóvski.

"Eu nunca quis ser aluno dele. O amei como pessoa. A morte dele foi a maior perda de minha vida. Eu tinha metade de sua idade, mas ele me tratava como igual, com confiança e amizade ilimitadas. Eu me sentia até constrangido com isso. Parecia ser uma admiração à qual eu jamais poderia fazer jus de fato."

Tradução de CLARA ALLAIN

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