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Sob o domínio da ayahuasca

Artista plástico leva chá alucinógeno a ritual no Instituto Tomie Ohtake; repórter da Folha relata sua experiência

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER DE SÃO PAULO

No princípio, era um legítimo programa de índio.

O artista plástico Ernesto Neto, 50, importou do Acre para o Instituto Tomie Ohtake um "ritual terapêutico" com ayahuasca do povo indígena Huni Kuin, na noite deste domingo (17).

Preparado com planta e cipó amazônicos, o chá alucinógeno é o mesmo de religiões como o Santo Daime.

Após levar a proposta ao Guggenheim de Bilbao (Espanha), teve apoio dos curadores da mostra "Histórias Mestiças" para montar uma cabana branca no segundo andar do espaço, na zona oeste de SP. Duas dezenas de pessoas se registraram para participar da cerimônia. Eu fui uma delas.

O ritual foi liderado por um pajé com cocar amarelo, Yawa Bane, 31. Entre "nauás", os brancos, ele é chamado de Leopardo. "Leo" tem fotos no Facebook pintando o rosto de "supernauás" na Noruega.

Era perto da meia-noite quando virei meu copinho de ayahuasca. É um líquido marrom. O cheiro lembrava Yakult com barbecue. Panos com cravo caíam do teto na forma de gotas, e 25 almofadas de babados amarelos formavam um círculo no centro.

Para quem é tomado pela "força" (o efeito da dose), o resto é história. Na minha, xamãs rebolam num cabaré e são atingidos por raios dourados --juro que aconteceu.

ÁRVORE

Antes de a luz apagar e a mente acender, o artista responsável pela instalação, Ernesto, me falava sobre "valorizar a cultura indígena".

Com colar de miçangas, inalava rapé (plantas e tabaco moído) com uma pazinha de casca de árvore e me contava que, em 2013, após seu primeiro trago do chá, viu sua mulher flutuar no espaço --jura que aconteceu.

Ele batizou a obra de "Em Busca do Sagrado" e explicou a jiboia desenhada no pano branco: é ela a "força" que te guia na jornada.

Três horas depois, o artista rastejava de quatro pela cabana, atrás de um chocalho de tampas de garrafa PET. Instantes depois, segurou meu rosto com as duas mãos: "Você está linda".

A vida pode mesmo ser linda sob o domínio da ayahuasca. Há um mês tomei o primeiro gole, num encontro da União do Vegetal (grupo com elementos do cristianismo).

Pétalas douradas caíam enquanto eu falava telepaticamente com um amigo filipino --que não era meu amigo nem filipino, e sim um japonês cutucando a orelha de outro homem para "tirar um pouquinho de amor de lá".

Chorei de verdade ao ouvir Gal Costa cantando "Força Estranha". Mais estranho ainda: vi os Simpsons ali na minha frente, junto com a musiquinha do desenho.

Lembro do pavor de nunca mais voltar daquela loucura. Olhava o relógio. O ponteiro era o homenzinho do Johnnie Walker correndo em círculos.

Senti vontade de vomitar, efeito colateral comum. Me tranquilizavam: não se passa mal, "passa o mal ao lidar com emoções profundas".

LIMPEZA

No Tomie Ohtake, havia três baldes azuis "para fazer a limpeza". Mas desta vez mal percebi a "força". No início do ritual, o mundo se transformou em luzes azuis como as do filme "Tron". Senti algo tremer, como num terremoto com chão de gelatina de uva.

Meu cérebro traduzia cânticos do pajé, numa língua indígena, para "djavanês", formando frases como "o tabule sambou na estrela do mar".

Comigo, parou por aí. Após uma crise de choro, uma galerista dizia estar "curada". Um homem viu o ambiente coberto de cobras coloridas.

Seis da manhã. O sol nascia, mas não falou comigo.


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