Índice geral Ilustrada
Ilustrada
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Marcelo Coelho

Picadas de aranha e outras viagens

É comum, em animações, que "finais felizes" nada mais signifiquem que a restauração da normalidade

No filme "Madagascar", um leão de zoológico, acostumado à vida de celebridade e às câmeras dos turistas, acaba voltando à selva africana. Com isso, sua personalidade vai perdendo os modos da civilização.

Ele se embriaga com a correria nas savanas, seu faro se aguça, e não mais reconhece na zebra, sua antiga vizinha de jaula, uma amiga afetuosa. O instinto carnívoro quer prevalecer -e muitas peripécias serão necessárias antes que o leão retorne à condição normal.

"Alvin e os Esquilos 3", em cartaz nestas férias de janeiro, é um misto de filme e animação que não modifica muito esse esquema.

Um grupo encantador de esquilinhos falantes, cantantes e dançantes, inteiramente dedicado ao "show business", vai parar numa ilha tropical. Frustra-se o plano que tinham de participar de um grande concurso de música e dança.

Em vez de balas de goma e camas com edredom, os esquilos terão de se acostumar ao consumo de cascas de árvore e à aspereza das noites ao relento.

A picada de uma aranha exótica promove, no mais ajuizado dos esquilos, uma transformação de personalidade parecida com a do leão de "Madagascar". Ei-lo convertido a uma espécie de Rambo ou D' Artagnan em miniatura, capaz de feitos destemidos na guerra e no amor.

Animações desse tipo divertem, naturalmente, as crianças -ainda que os adultos tenham de se armar de certa paciência. Sabemos a trabalheira que nos espera, durante a projeção do filme, até que tudo volte exatamente ao estado de início.

É comum, aliás, que "finais felizes" nada mais signifiquem que a restauração da normalidade -supostamente, a felicidade existia antes de tudo acontecer. Toda aventura, no fundo, seria uma experiência indesejável, da qual pouco se tira.

Afinal, "Madagascar 2" e "Alvin e os Esquilos 3" terão de corresponder, bem ou mal, às expectativas de seu público, mostrando novamente os personagens tais como eram no princípio de tudo.

Mas talvez haja um sentido mais interessante, além da mera mecânica comercial, nos clichês e nas fórmulas desse tipo de animação.

Animaizinhos simpáticos voltam à selva. Resumindo assim, o esquema de "Madagascar" e "Alvin e os Esquilos 3" representa algo que adultos e crianças conhecem bem.

Simboliza-se, no fundo, o processo da educação de uma criança. O selvagenzinho de dois ou três anos tem de evoluir até o menino mais ou menos ajuizado de oito.

Não é por acaso que a grande maioria das histórias para criança tem bichos como protagonistas. A criança, pelo menos a criança até certa idade, é o animal do homem.

Mas "Alvin e os Esquilos" e "Madagascar" trazem uma diferença em relação às histórias tradicionais. O herói, leão ou esquilo, não é apenas um bicho falante. É também uma celebridade -uma figurinha acostumada a holofotes e paparicos.

Trata-se da "criança-artista", dotada dos maiores talentos, incapaz de conformar-se com um minuto de nossa desatenção.

Escondido sob tantas gracinhas de butique, vibra o animal carente de liberdade, desejoso do ar das selvas e da sujeira das fazendas.

No final de "Alvin e os Esquilos 3", cabe aos heroizinhos fugir de uma erupção; só na ordem civilizada que encontrarão a segurança, sinônimo da felicidade, aliás.

Fico penalizado, mas também uma parte de responsabilidade me cabe nisso, com essas férias de criança urbana, nas quais o cinema de shopping promete, e depois nega, o sentido da aventura e do risco que poderia existir numa infância (e numa vida adulta) de verdade.

Como nenhum herói dessas histórias mudou de fato após encontrar a selva, sua experiência foi insatisfatória. Resumiu-se ao breve surto de uma picada de aranha, ao delírio passageiro de uma viagem a Madagascar. Volta, incólume, ao conforto e às exigências de sua rotina de celebridade encantadora.

Por isso mesmo, o adulto contemporâneo costuma ser uma criança enrustida; foi educado para deixar de ser puro instinto, mas não passou pelo amadurecimento.

Resta torcer para que das picadas de veneno de aranha não passe, mais tarde, às picadas de outra substância, em busca de uma transformação que não sabe como realizar.

P.S.: No artigo da semana passada, citei erradamente o nome de uma música em espanhol. É "Por que te Fuistes, Mamá", e não "Por que Fuistes, Mamá". "Por que você se foi", não "Por que você foi".

coelhofsp@uol.com.br

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.