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Marcelo Coelho

Temporada de caça

Críticas a Marina Silva começam a ficar forçadas; incomoda-me mais sua esperteza que sua tolice

Como não podia deixar de ser, está aberta a temporada de críticas a Marina Silva. É saudável. Todo candidato com chances de ganhar a eleição deve passar por esse tipo de obstáculos.

Azar, na verdade, do comentarista que se aventura no debate. Algum tempo atrás, se falava mal do PT, via-se incluído imediatamente na lista do "PIG" (Partido da Imprensa Golpista). No caso de criticar Aécio, seria estigmatizado como "petralha".

A ascensão da "terceira via" complica o jogo. O crítico que tentava escapar da dicotomia PT-PSDB precisa agora se afastar de Marina também.

Falar mal dos três ao mesmo tempo! Mas que jornalistas incontentáveis! Será que apoiam Levy Fidelix? Seja como for, o momento é de arregaçar as mangas contra Marina. A tentativa acaba produzindo críticas que me parecem forçadas.

Faço muitas ressalvas à candidatura do PSB, mas prefiro deixar isso para mais tarde. Começo com uma injustiça.

O físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, meu colega de Conselho Editorial, escreveu domingo passado que não se sentia confortável em ter como presidente da República "alguém que acredita concretamente que o universo foi criado em sete dias".

O criacionismo de Marina Silva, diz Cerqueira Leite, "não decorre da ignorância, mas de um defeito de percepção". "Os especialistas", prossegue o cientista, "chamam essa condição de desordem do desenvolvimento neural".

Fico assustado com um diagnóstico tão irrecorrível. Cerqueira Leite fala dos chamados "idiots-savants". Pelo que sei, são aquelas pessoas com grande deficiência mental mas que, ao mesmo tempo, conseguem por exemplo decorar listas de nomes intermináveis, ou fazer contas dificílimas de cabeça.

Será que a capacidade política e verbal de Marina entraria nesse mesmo tipo de habilidades? E o que seria um "defeito de percepção"?

Se a candidata insistisse em dizer que, na mesa à sua frente, está sentado um tamanduá, quando todos podem ver que só existe um copo de água, eu chamaria isso de desordem neurológica.

Acreditar no relato bíblico do Gênese não me parece um fenômeno equivalente. Não tem nada a ver com uma percepção errada da realidade. Tem a ver com fé religiosa.

Sou o primeiro a considerar essa fé totalmente irracional. Não chego a ser cético, amistoso ou tolerante quanto a isso. Passo a eternidade no inferno, mas continuarei dizendo que a Bíblia está errada, que a ciência terá sempre a última palavra, e que acreditar em Adão, Eva, arca de Noé e tudo o mais não passa de total bobagem.

A questão é outra. O que significa "acreditar"? Milhões de pessoas acreditam em bobagens tremendas, mas levam sua vida de modo tão razoável e sensato quanto o mais austero cientista.

Acreditar, para essas pessoas, é quase uma reverência pessoal à tradição. Exceto em casos de fanatismo delirante, o religioso está pronto a aceitar que dois mais dois são quatro, e que se uma porta está aberta, não está fechada. Só não leva esses princípios ao reino misterioso da religião, onde Deus pode ser uno e trino, ou pode ter corpo de homem e cabeça de elefante ao mesmo tempo.

Aliás, o especialista em física quântica também aceita a realidade da porta e da parede à sua frente, ainda que no mundo subatômico as evidências pareçam contrariar o mais sólido senso comum.

O religioso, se não for maluco, sabe fazer a separação entre o mundo real e o plano de sua fé. Pode haver duplicidade mental nisso, mas não se trata de uma percepção deformada da realidade.

O problema não é cognitivo, mas prático. O religioso se complica quando age mais em função da fé do que do bom senso. Segue, por exemplo, a teoria da indissolubilidade do casamento, mesmo que isso seja fonte de infelicidade para toda a família. Sofrerá culpas inúteis porque sua religião não aceita a homossexualidade.

É esse plano prático, e não o funcionamento cerebral de Marina Silva, que cumpre avaliar. Do ponto de vista subjetivo, ela pode acreditar nas maiores tolices. Mas não é tola como candidata.

Aliás, é uma candidata nada inovadora nesse aspecto. Segue, em suas declarações, o que lhe der mais votos, e especialmente aquilo que não lhe tirar os votos que já tem.

Oscila e enrola tanto quanto os outros; um pouco mais, talvez. Incomoda-me, na verdade, mais sua esperteza do que sua tolice. Mas vejo que, para falar disso, preciso do espaço de outro artigo.


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