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Crítica - Tragédia
Juca de Oliveira guia o público pelo drama de um pai em 'Rei Lear'
Em espetáculo solo, ator se expressa com empatia e clareza e mostra seu melhor ao viver o personagem Bobo
"Rei Lear", com o ator Juca de Oliveira, não começa com a tragédia do rei octogenário, mas com a passagem de "Hamlet" em que o príncipe instrui e questiona os atores, no que é tido como exortação do próprio Shakespeare para que não sufoquem o texto.
É o que o ator procura fazer, ao longo da hora seguinte, com a tradução simples e precisa de Geraldo Carneiro e a encenação despojada de Elias Andreato. Como Lear, consegue plenamente.
É o Juca de Oliveira tão conhecido, que se expressa com empatia e clareza, que conversa com o público e o guia gentilmente ao narrar a trajetória do rei.
Narração --em lugar de ação-- é algo que se costuma evitar no palco, mas é até necessário, no caso, devido à adaptação drástica.
A demência crescente do rei é representada com naturalidade, sem descontrole, como pede Shakespeare/Hamlet no começo. Mas é ao viver o Bobo que o ator mostra seu melhor.
Mais realista e cruel, incapaz de ingenuidade, o personagem remete à própria função de um ator e é prato cheio para a atuação irônica de Juca de Oliveira.
Em lugar da loucura e depois da infantilização de Lear, seu Bobo traz lucidez e distanciamento, desnudando o autoengano do rei, mesmo sob risco de punição.
FAMILIAR
Mas as intervenções são pontuais. A adaptação opta pelo núcleo familiar e dramático, sacrificando aquele mais político e propriamente trágico dos outros personagens de importância na peça, como Edgar, Edmund e Gloucester.
É como se "Rei Lear" se fechasse em uma de suas fontes, aquela dos contos de fadas mais ou menos próximos de Cinderela: as duas filhas malvadas que fingem amar e assim enganam o pai, enquanto aquela que o ama de verdade, Cordélia, é perseguida.
Levada ao limite, a opção da montagem pelo drama termina sem a morte trágica de Cordélia --e do pai.
Não falta justificativa para essa mudança do final. Até Samuel Johnson (1709-84), ensaísta que é referência sobre Shakespeare, preferia uma adaptação em que a filha não morria. Mas aí se torna quase outra peça. Ganha até moral da história, com a vitória do bem sobre o mal --e a recompensa ao pai, por seu arrependimento.
Não se trata de monólogo, mas de um solo em que o ator faz vários papéis, como nas celebradas versões de Bob Wilson e Robert Lepage para "Hamlet".
A interpretação é menos feliz nos personagens femininos, das três filhas. Os trechos selecionados são didáticos, ajudam no desenrolar da trama familiar, mas também acabam carregando algo de caricatural.