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Marcelo Coelho

Debate sem fim

No teatro de Musset, homens mentirosos e mulheres fingidas saem feridos na tragicomédia do amor

Para quem se irrita com os debates eleitorais, uma grande peça de teatro pode servir de antídoto.

O melhor da coisa, acho, é quando determinado personagem faz um discurso bem longo e elaborado, dando todas as razões que tem para se comportar como se comporta.

Ele explica, demonstra, justifica-se, exalta-se: o espectador está praticamente convencido de tudo, há um silêncio... E então o outro personagem toma a palavra, demolindo com perfeição os motivos do antagonista.

Um belo momento desse gênero ocorre em "Não se Brinca com o Amor", peça que o poeta Alfred de Musset (1810-1857) escreveu aos 24 anos. O texto até hoje mantém muito de sua aparência primaveril e graciosa. Mas é só aparência; há belezas maiores em jogo. A peça está em cartaz em São Paulo, no teatro da Aliança Francesa, e gira em torno de um casalzinho de 20 anos.

Camille e Perdican são primos, passaram a infância juntos, e se amam. Reencontram-se depois de uma longa separação. Enquanto Camille ficou encerrada num convento, aprendendo religião e boas maneiras, o jovem Perdican foi estudar em Paris. Voltam para o castelo da família. O velho barão quer que os dois se casem; não há como o projeto não dar certo.

Mas Camille está mudada. Desconfia dos homens. Prefere se tornar freira a ter de suportar uma vida conjugal infeliz. Pressiona o primo: seria ele capaz de amá-la para sempre? Não vai arranjar amantes? Aliás, já não terá tido amantes enquanto estudava em Paris?

O jovem Perdican parece esmagado pelas perguntas e cobranças de Camille. Responde que sim, que já teve amantes. Esqueceu-as depois? Sim, o amor não durou. Não teve nenhuma que marcou mais profundamente o seu coração?

Perdican se esquiva. O que quer a prima? Obter uma fala de confessionário? Ele não acredita em Deus, acha que as freiras do convento contaminaram a menina com histórias amargas. O "debate", se podemos dizer assim, vai se tornando cada vez mais inteligente e insolúvel. Perdican se levanta.

"Adeus, Camille, retorna a teu convento." É um golpe e tanto, quando sabemos que o rapaz ama a prima perdidamente. Mas Perdican continua. "Quando as freiras vierem repetir suas histórias de maridos infiéis, de amores desfeitos, de traições e promessas falsas, responde-lhes o seguinte..."

Vem um desses grandes discursos que são a glória do teatro clássico. "Todos os homens são mentirosos, inconstantes, falsos, falastrões, hipócritas, orgulhosos ou covardes, desprezíveis e sensuais; todas as mulheres são pérfidas, cheias de artimanhas, vaidosas, bisbilhoteiras e depravadas; o mundo é um esgoto sem fundo..."

Ele toma fôlego. É verdade que, com frequência, as pessoas erram quando amam, saem feridas e infelizes de cada paixão. "Mas amaram." Quando se voltarem para olhar o passado, poderão dizer para si mesmas: "Sofri muito, errei algumas vezes; ainda assim, amei. Fui eu que tive essa vida, e não uma pessoa inventada, criada por meu próprio orgulho e por meu próprio tédio".

Fim do segundo ato.

Não vou contar o resto. Há mais do que um emocionante (e um pouco retórico) embate de vistas sobre as desventuras do coração. Esse momento de grande ênfase contrasta, na peça, com um entrecho bastante leve, do qual participam dois abades trapalhões, prontos à bebedeira e à inconfidência.

Em tese, o espectador não espera mais nada além de uma historiazinha no estilo do século 18, em que depois de algumas intrigas, cartinhas e mal-entendidos tudo termina dando certo.

Acontece que Musset escrevia mais de um século depois de Molière, e mesmo um inocente casal de apaixonados já tinha, em pleno período romântico, outras sombras e complexidades. O jovem que finge indiferença, ou que finge estar apaixonado por outra moça, já não sabe mais até que ponto, dentro de si mesmo, seu comportamento é puro jogo ou sentimento verdadeiro.

Como dizia o herói de "Lorenzaccio", outro drama de Musset, a máscara já não se desgruda mais da face. Dentro da própria história, os personagens fazem teatro o tempo todo.

A ambiguidade entre amor real e amor fingido é traduzida admiravelmente na montagem de Anne Kessler, da Comédie Française, que ironiza as convenções do teatro, acentua a ligeireza quando o assunto é sério, e dá ritmo de comédia aos movimentos, muito sofridos, do amor com que se brinca.

Ou não? Vale a pena acompanhar esse debate.


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